quarta-feira, setembro 27, 2006

Su Doku

Comecemos por uma distinção: não fazer nada não é mesmo que não fazer nenhum. Chamamos “não fazer nada” a uma relação passiva e morta com o tempo, invadidos pela seca e golpeados pelo aguilhão da chatice; já o “não fazer nenhum” é uma arte vastíssima, a que só o saber dos mais perfeitos manguelas tem acesso. Quando estamos no trânsito, num autocarro em hora de ponta ou nas longas filas das repartições, podemos dizer com propriedade que não estamos a fazer nada. Quando nos prostramos numa praia tropical, a braços com uma bebida exótica e entregues aos cuidados dos mais diligentes profissionais do lazer, aí só podemos estar a não fazer nenhum…

Tem sido luta constante das mulheres e homens de todos os tempos a obtenção da fórmula alquímica que verta o não fazer nada num regenerador não fazer nenhum. Assim surge o tele-lixo, os jogos de computador e, dum modo geral, os passatempos. Em meados dos anos 80, incautos comercializaram um objecto ao qual chamaram “cubo mágico”, visando capar os tempos mortos e fazer proliferar as horas de ócio. Rejubilaram quando uma febre se apoderou do planeta, que passou a falhar estações de metro ou paragens de autocarro numa estranha disposição de pintalgar de uma única cor cada face desse rotativo poliedro. Esses incautos julgaram ter encontrado a fórmula, mas falharam! Se o cubo aparentava cumprir a função, a verdade é que ocupava espaço – no bolso ou na carteira – podendo mesmo ocorrer a quem o transportasse que estaria a ter (Oh, horrorosa palavra que aí vem!) trabalho ao transportá-lo. Ora, se tenho que trabalhar, é óbvio que não estou a não fazer nenhum – e lá se vai a lógica do cubo!

Já as palavras cruzadas são exercícios volúveis, como volúvel é a natureza das palavras. Impossível não fazer nenhum com o seu corpo sinuoso… Só os números contêm a pitagórica perfeição que giza a tarefa de não se ter qualquer tarefa. E refulge, hoje, a perfeição do universo na desarmonia fonética desse estrangeirismo: Su Doku.

É poroso, daí que se insinue por todos os lugares, sem que ninguém o transporte propriamente; é jeitosinho, chegando a ser compatível com os mais tremedores e desajeitados tripulantes do Bus das 18.30; é discreto, cabendo em qualquer reunião ou beberete. Não se ficando por estas inegáveis qualidades, o Su Doku – oh, felicidade! – não serve para rigorosamente nada, e por isso proporciona a nobre conquista de não se fazer nenhum. Desde que alguém me ensinou a lidar com ele, nunca mais fiz outra coisa, e pude redefinir-me aos olhos de toda a gente: em vez de um desocupado, sou agora um calaceiro!

Por estas razões e as mais que aqui se omitiram, elevo o Su Doku a passatempo nacional, com a oculta convicção de que não há órgão de soberania que o dispense, discreto e abandonado à madeira vetusta da bancada parlamentar.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Raízes

Caros colegas.

Nunca, até hoje, me remeti a este blogue. Após leitura de alguns dos posts, fico com a sensação de que este blog não é para mim. Intimida-me a falta de palavrões e alusões futebolísticas tendenciosas.

O facto de partilhar a mesma carga genética que o criador do “interrupto” traz-me responsabilidades acrescidas, expondo-me a inevitáveis comparações de estilo, que são de todo incomparáveis.

Aliás, esta carga genética pesa-me nos ombros desde tempos ancestrais. Não é fácil!

Partilhamos as mesmas origens e a mesma voz mas por ser o mais novo serei sempre o “puto” e ele “o sábio”. Fui desde sempre torturado pelo professorado, que insistia em comparar-nos por frases célebres e pelas redacções escolares. A dona Ana, professora da escola primária de Mechedinho, detentora de uma mão imponente (digna de um pugilista) e de uma régua ainda mais cruel, foi a primeira a deixar-se levar. Certo dia interrogou o seu pequeno auditório, sobre qual seria a brincadeira de eleição entre os petizes. Entre as respostas mais ou menos previsíveis houve uma que se destacou:

“Eu gosto é de brincar com as palavras!”

Uma frase como a anterior, teve certamente o seu preço. Naqueles tempos, as palavras tinham um princípio muito mais puro, o da causa e da consequência. A escolha de uma palavra errada entre os colegas, poderia levar a intensas horas de punição no poste, sob o comando do “Figueiras”, o temível repetente de mãos calejadas. Com sorte, teríamos o leite achocolatado de distribuição diária, estrondosamente rebentado na nossa pasta.

Agora é tarde. Não há tortura que nos valha!

domingo, setembro 17, 2006

Já tenho óculos...

Sem óculos, as deformidades congénitas deste mundo, que Leibniz classificou como “o melhor dos mundos possíveis”, tendem a apagar-se, a esbater-se, tonificando-o com um polimento maior – para lá das suas imperfeições. Mas a este engano de alma ledo e cego, como vaticinou o poeta, a fortuna não deixa durar muito, e, vai daí, há que comprar uns óculos, para que o chão rugoso da realidade nos ressurja sob o manto da mais míope das fantasias.
Arrojamo-nos então pelas imperfeições do mundo na aquisição de novas próteses oculares, recorrendo a essa espécie de visionário pós-moderno a que vulgarmente chamamos "oculista". E, como é de esperar, a funcionária de um oculista é sempre um modelo de acuidade e clareza, como também se espera que um advogado seja o modelo do cidadão cumpridor ou o médico a imagem das mais saudáveis vivências. Por isto mesmo, coube-me em sorte uma tão visionária criatura, que nenhum anel de Giges poderia ocultar-me, furtando-me ao seu modelar campo de visão. E assim me sujeitei ao seu criterioso desvelo para com as minhas próteses, para o modo como encaixavam nas protuberâncias da minha fronte e nas escarpas insondadas do meu tão estimável rosto. E foi nesta ocasião, quando a menina me olhava no fundo dos olhos e quando já eu me preparava para, sob os auspícios de Hegel, experienciar a noite do mundo, que me achei num face a face com a minha própria condição: vi, como nunca antes tinha visto, o meu resvalar trintão nos caminhos da existência.

Os trinta são uma idade limite, em que a aproximação juvenil democraticamente garantida no tratamento por “tu” já não é dado adquirido. Lá nos aparece, na assombração do quotidiano, a dúvida de um “tu” eternamente jovem ou de um “o senhor” excessivamente venerando. Atenta e acurada, a empregada da óptica optou por um tratamento misto. Exemplifiquemos:

-“Queres uma bolsinha para os óculos; temos uma oferta que lhe agradará com toda a certeza!”
-“O que fazes logo à noite? Se for do teu agrado, garantiremos um pontual mas gratificante tratamento a esse seu pujante corpinho…”
Há então, entre mim e um par de óculos, um resvalar para o mundo dos “senhores” em que o “tu” é abolido. Entrementes, é preciso que uma funcionária de uma óptica me desembrulhe o mundo baço em que, no vidro fosco de uma realidade em progresso, com um pé ainda no “tu” e com o outro a progredir para “si”, espera-se desesperadamente por um nós que nos circunde, sem óculos ou próteses, para que o mundo novamente nos engane numa ilusória perfeição…
- Deixa lá os óculos, então… Esqueça-se. Desenquadre-se de uma realidade em que não te reconheces. Pode ser que um dia – quem sabe? – o “tu” lhe apareça numa permissiva e plena eternidade em que possas, enfim, libertar-te desse tão coloquial tratamento que a sua – ou a tua? – idade já exige… Que achas? Que lhe parece?

(Foto de Chema Madoz, claro!)

segunda-feira, setembro 11, 2006

Jacques Derrida - Deconstruction And The 'Eccentric Circle'

Uma vez mais Derrida, na envolvência meditativa da sua voz... Pena a intromissão documental que lhe corta a palavra, mesmo que com um excerto (em Inglês) desse belíssimo livro intitulado "Memoires - pour Paul de Man"!

segunda-feira, setembro 04, 2006

Estou sem óculos!!!

Uma prótese é mais do que uma simples extensão; é também um adereço, uma forma desarrumada de lidarmos com as imperfeições do mundo, como se disséssemos, como poeta romântico desavindo com o criador inepto: - "Já que me fizeste assim, toma lá, eis-me de prótese!" Assim um par de óculos, ou um mais pontual par de muletas, um ameaçador aparelho de dentes ou um discreto aparelho auditivo evitando os ãhs que nos nasalam os ditos… Acima de tudo, uma prótese é uma marca da nossa mais sublime humanidade, teimosamente corrigindo a Natureza dos seus caprichos, inestetismos ou matreiros acidentes.

Mas é também – ó miséria humana! - um manancial de hábitos e de afectos, tão caprichosos que nos levam a estimar o que tão constantemente nos fustiga. Pois é! Estamos deitados nos hábitos; estamos ciosos de enxertos! Somos, nós próprios, próteses, e delas sentimos saudades como se fossem partes de nós mesmos! Herdeiros de Proteu, somos construtores demiurgos; próteses somos e nelas nos sustemos.

Neste pequeno excerto confessional, elejo como alvo das minhas lamúrias uma prótese que, de há um tempo para cá, se tem fincado no chão da minha pequena realidade como eixo artificioso de todo um universo. E choro, e suspiro, e recordo os dias em que tal prótese se infiltrou no meu sossego como carne da minha carne – os meus óculos.

Já Chico Buarque cantou a saudade como dor latejada – “é assim como uma fisgada num membro que já perdi” – e são os acordes dessa mesma música que envolvem as lágrimas dos meus olhos despidos, sem óculos – sem prótese, dEUS meu! – aos quais a minha mão procura, num aconchego fantasma à extremidade das minhas orelhas. E busco o arranhão das suas hastes, e o teimoso embaciar das suas lentes, e a flanela que não serve para mais do que enxugar lágrimas e recolher pestanas.

Já aqui citei uma das mais insólitas afirmações de Wittgenstein: as ideias assentam sobre o nosso nariz, como um par de óculos. Pois bem, recuso-me a ter ideias sem a minha prótese, essa, que tanto me torturou e que tanto socorreu a minha pele, excessivamente imaculada na sua placidez sem aros. Declaro então aqui as saudades dos meus óculos, reclamando ao meu rosto sem marcas o declínio sorridente a que subitamente se votou. Quero os meus óculos!!! Alguém os viu?

sábado, setembro 02, 2006

Cidadãos e cidadãs,

Após um período de defeso, anuncia-se uma nova aquisição...




















... Brevemente!

referer referrer referers referrers http_referer