O Guarda-Chuva
A realidade guarda-chuva transporta uma ligação invisível com os espaços celestes, nos seus volúveis humores. O seu tecto de pano – opondo-se à solidez de um telhado, etapa em que a casa coroa a sua ligação terrena em enchapelada importância – liga-se por um fio invisível de chuva às líquidas comportas do céu. E é aqui, nesta sua ligação etérea, que o guarda-chuva revela a sua natureza circunstancial e fugidia, em que os comportamentos se determinam no horizonte das suas ligações. Sigamos umas linhas mais no esclarecimento da natureza do acessório…
Imitar, já dizia o velho Aristóteles, é acto consubstancial ao homem que, esteta por natureza, inventa jardins inodoros nos canteiros guarda-chuvais que são as cidades pluviosas. Vistas de cima, as ruas são campos de malmequeres de lona e de lírios com abertura automática - e verdadeiras flores andantes são os mortais à chuva! Vista de baixo, a panorâmica é pobre e entristecida, não sendo senão um feixe mecânico comandado por uma espécie de pau com um pano por corola. Por isto mesmo, dada a sua natureza volúvel e ligada ao céu, estou em crer que um guarda-chuva deve ser perdido mais vezes do que o Funes perde a carteira, sendo esta convicção o motivo para que um guarda-chuva nunca durasse mais do que 2 horas em minha posse…
Pois bem, hábil em perder guarda-chuvas, sou uma vítima da meteorologia. E como vítima que sou, as pessoas, condoídas, vão interrogando as causas do meu ser encharcado e, alheias às verdades de Tales de Mileto, privilegiam a secura nos caminhos do meu dever-ser: vão-me emprestando guarda-chuvas que nunca terão regresso, feliz acessório de raiz em nuvem que os mortais, transgressores, teimam em ligar ao chão.
Muito tenho justificado a minha insistência em perder guarda-chuvas, sem que consequências de monta chovam na minha integridade física e mental. A excepção acontece agora, quando alguém, cuja identidade não revelo por temer represálias, me emprestou o seguinte guarda-chuva:
Este espécime, não sei por que cargas de água, teima afirmar a sua importância nodal para os caminhos do acontecer e do ser, de tal maneira que o mesmo alguém que mo emprestou chegou ao cúmulo de me ameaçar fisicamente caso o perdesse. Sob opressão, vou mantendo o guarda-chuva e perdendo tudo o resto (liberdade de expressão e pensamento), sabendo que o culpado vive abrigado da sua própria essência, pela via da hostilidade e violência. E ele lá vai subsistindo… vejam o seu ar impune e ajanotado:
O farsante; o drogadito; o pequeno-burguês!...