terça-feira, julho 24, 2007

Não tenho, neste momento, a mínima pachorra para inventar um título para este desgraçado post

Abeiro-me da estação de Metro, ali mesmo ao lado do Via Catarina. A prudência, associada a alguma falta de tempo, diz-me para procurar o livro pretendido na Bertrand do Estádio do Dragão, a maior e mais abastecida de todas as análogas. Provido de aristotélica virtude, para lá me dirijo. Vou contando estações – Bolhão – Heroísmo – Campo 24 de Agosto – Campanhã – Dragão. Chego ao destino, voo pelas escadas e, numa lancinante corrida contra o tempo, vou em busca do livro pretendido. Sem fôlego, já na livraria, sirvo-me de um ou dois caprichos editoriais antes de, uma vez ao balcão, perguntar pela publicação que ali me levava. A sorte joga connosco às escondidas, aliada ao destino que nos enfrenta num repetitivo ping-pong: o livro só existe… em Sta. Catarina. Pago as banalidades e choro pelo essencial – dirijo-me ao Metro: Dragão – Campanhã – 24 de Agosto – Heroísmo - Bolhão. Cheguei. Entro no Via Catarina, peço o livro desejado e, quando vou para pagar, noto a falta do cartão Multibanco. Contactam a livraria do Dragão… Que sim, que havia lá um cartão esquecido com o meu nome. Conformo-me. Pago os livros com cartão de crédito e vou contando estações: Bolhão – Heroísmo – Campo 24 de Agosto – Campanhã – Dragão.

Chego ao fim da cruzada. Ao balcão, lamentoso mas nem por isso menos triunfante, peço o cartão esquecido. Entregam-mo. Sorriem. Que acontece, dizem cinicamente. Toca o telefone no preciso momento da devolução da tarjeta. Como é mister do funcionário, atendem antes que o cliente se possa ir embora. Era da Bertrand de Sta. Catarina, avisando, conscienciosamente, que lá me tinha esquecido do cartão de crédito.

domingo, julho 15, 2007

A funerária Cebola

Subsistia para os lados da Alta, entre Repúblicas, sob a vigília da Cabra e muito próxima da inefável Rua da Matemática: era a Funerária Cebola. Sempre julguei – apoiado no dito de Eça, segundo o qual tudo em Coimbra é “asilo de sabedoria” – que este nome, aplicado a uma funerária, não era mais do que uma sinalização do homem enquanto ser-para-a-morte. É que a conhecida gíria para um relógio inconstante (Cebola) assenta que nem ginjas à sempre indefinida espada de Dâmocles que nos pende sobre as cabeças, dizendo que, mais tarde ou mais cedo, seremos clientes efectivos de análogo estabelecimento. Em sã convivência com o Relógio da Torre, a cebola fatal; Se um dá contagem crescente, a outra faz contagem decrescente - o relógio da vida; a cebola da morte.

Mas não era só o nome que dava particularidade e carisma à velha agência coimbrã. A Funerária Cebola, de relógio em riste para a contagem decrescente sabia, como Malraux (o Manuel Maria Carrilho francês) que só a morte transforma a vida em destino. Por isso, adequaram os seus serviços a uma cidade secularmente devotada aos estudantes, legitimando post-mortem a sua vocação estudantil. Empenhada em oferecer uma maior gama de serviços aos seus normalmente pouco combativos clientes, a Funerária Cebola, ostentava na porta o seguinte aviso:

- Funerária Cebola. Tiramos fotocópias.

Foram incontáveis as vezes que a funerária cebola me salvou a vida. Quando o engarrafamento nas fotocopiadoras oficiais era imenso, aquela calma de morte, discreta e bolorenta, deu guarida a muitas das minhas urgências de estudo. Copiou Hegel, Marx, Kant; copiou Heidegger. Plural era o expediente da Funerária Cebola. E interdisciplinar.

Cópias A4 de cristalinos versos, elevados ensaios, inteligentes tratados – de obstetrícia; de estudos literários; de Análise Matemática… - de paixões da Alma. Algum toner para melhor se compreender gráficos comparativos, análises empíricas e estudos comparados. Depois de fazer cópias destes lavores da alma – copiando a alma em si mesma, ao arrepio de Platão – a funerária cebola encaderna os corpos pálidos em lombadas de pinho. Para que não se diga, como o antigo estudante José Régio, que, ao poeta, “as asas não lhe cabem no caixão”.

Aqui fica o post, grato à vocação total deste digno exemplo de uma loja, de um conceito, de uma imagem de marca na arte de bem servir: Funerária Cebola – contra um saber putrefacto.

quinta-feira, julho 12, 2007

Estatutos e cozinheiros

Exigia o protocolo das lides académicas de então: de cada vez que um ilustre universitário assentava cátedra no céu (ou no Inferno, consoante o exercício do chumbo ou o abuso da sebenta) os sentidos colegas deveriam assistir, em solene luto, ao funeral. Todos, sem apelo nem agravo. Esta regra, todavia, não constituia excepção à regra das regras, segundo a qual nenhuma regra é isenta da regeneradora excepção. Todos iam aos funerais, menos o professor Vitorino Nemésio, que era, no respeito deferente de todos, “aquele que não ia a funerais”. Era assim, segundo rezam literalmente as crónicas, que Jacinto Prado Coelho explicava essa figura altaneira das civilizações de todos os tempos: o estatuto.

Pois bem, a excepcionalidade do estatuto é ditada pela excepção de quem o detém. E assim se explica o seu modo fluido e corrente de ser nas coisas, nelas se instalando como Proteu, ora metamorfoseado na forma longilínea da fada ora vertido na irregularidade espinhosa do mafarrico...

Daqui evocamos uma das mais invisíveis instâncias de poder - o cozinheiro. Herdeiro dos magos e dos alquimistas, o cozinheiro é um legitimador do poder vigente, pelas armas invencíveis do tempero, da colher de pau, das especiarias do império ou do veneno dos Bórgias. Este operador de marionetes foi, até à invenção da televisão, um regente discreto e discricionário, na sua farmacopeia diabólica e nos seus segredos seculares. Até que entrou a medo pelos spot-lights, sendo o seu baixo estatuto reproduzido nos apelidos dos mais célebres: Maria do Lurdes Modesto; Michel (o trans-cozinheiro!, parecemos ouvir anunciar); Filipa Vácondeus (que nós agradecemos)... Mas só à superfície notamos esta condição humilde. É que o cozinheiro, uma vez entregue ao seu cozinhado, é como dEUS no acto supremo da criação – a perfeição do seu acto espelha a perfeição consubstancial de si mesmo, o que é o mesmo que dizer que não há pai para ele!

Por isto, não pode deixar de dar um certo gozo televisivo o facto deste tipo, que aqui pus ao lado e do qual nunca tinha ouvido falar, manter um programa em que convida personalidades de várias ordens, géneros e quadrantes para pura e simplesmente não fazerem nenhum. Legitimado por um presumível estatuto, que lhe confere o dom de tratar por tu desde o presidente da junta ao real rei de espanha, vai chamando pseudo-convidados ilustres, cujo embaraço espelha bem a realidade que ali se depara: o espectáculo, na verdade, não tem convidados, não tem mediadores e, provavelmente, não tem espectadores. Nada, mas mesmo nada interfere entre o mestre e o seu domínio, que lá vai monologando em paz ante os trejeitos do paspalhão de costas ao alto, cuja estirpe se perde na especiaria e onde títulos e comendas permanecem em banho-maria.

Devolutor da mortalidade aos pretensamente imortais, este cozinheiro convida celebridades para, em abono da virtude, repôr a verdade sobre elas mesmas: espécie de monos, inúteis, tagarelas e desinteressantes papalvos e manguelas. E tudo pelo efeito encantatório da dança da sua colher de pau.
Que se lixe o cozinhado! Que viva, pois, o cozinheiro!

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