quarta-feira, outubro 22, 2008

Rapariguinha do shopping


Lanço-lhe um confundido “boa noite!”, sem cuidar que era hora do lanche. A rapariguinha sorri, por detrás do balcão, com um passageiro e convivial “lá chegaremos”… Mas logo a língua reincide nessa estranha tendência em fugir para a verdade, e acrescenta num murmúrio: - “…boa-noite ou bom-dia, para nós é igual!”

Estávamos num Shopping, em que o dia é de uma permanência tão impositiva que a sucessão cronológica e os ritmos naturais se tornam acessórios. Como denuncia a rapariguinha do Shopping, realmente o dia e a noite indiferenciam-se, nesse mundo plenamente iluminado, sem tempo e sem geografia – paradigma claro do que Marc Augé chamou os “não-lugares”…

Repare-se que qualquer tipo de comportamento que escape ao controlo social é, aqui, sancionado a dobrar. Experimentem parar no corredor e olhar para algo que não seja uma montra – deter a torrente e simplesmente olhar. Somos imediatamente invadidos por um certo desconforto de vitrina, como se tivéssemos os escaninhos da alma escancarados no expositor. O vigilante invisível topa o não-tipificado e desconfia do não tipificável: vive-se sob o padrão do típico, que se torna assim a tipologia do tempo.

Preocupa que a superfície comercial reproduza um modo de conviver com a Polis, em que os cidadãos desconhecem os corredores do poder, o funcionamento do esqueleto que actua por detrás do biombo – e se limitem a passar, a correr, no covil do presente, como sob a protecção do mundo sem sombra que é o Shopping.

Neste espaço não há, à vista desarmada – que é a única que aí funciona – minoritários, desvalidos, opressores ou oprimidos. Todos são consumidores potenciais ou virtuais, não existe solidariedade, nem obscenidade (note-se que falo do “espaço útil” do Shopping), e mesmo as classes se dissolvem na aparência uniformemente consumista dos passantes. Num shopping, ninguém é de esquerda!

Ao que parece, abriu no fim de semana passado, em Matosinhos, um outro Shopping. Não sei se a ironia é deliberada, quando lhe chamam “Mar”.

Sei que, para além da legítima preocupação com o pequeno comércio, para lá da dúvida sobre a subsistência desta onda proliferante, de que o “Mar” é a última manifestação, convém sempre diferenciar o dia da noite, e saber valorizar recantos de risco, de recolhimento, de transgressão… São eles que fazem com que uma cidade não seja uma vitrina, mas um elemento poético de perigo, de salvação e de diversidade.

Recorde-se então, na viagem para o novo Shopping do mar, que por debaixo do empedrado está a praia; e, a céu aberto, recuperemos a certeza empírica da afirmação de um «bom dia!», proferido na hora certa do relógio nenhum.

PS: Já agora, chamo a atenção para o já antigo “Sócrates no Shopping”, do prof. Levi Malho. Para quem não conhece, siga o link.
[imagem roubada aqui]

sexta-feira, outubro 17, 2008

Simone de Beauvoir, em ano de centenário*


O ditado, como acusou Blanchot, é uma ordem sem réplica. O ditado dita o que é, sem possibilidade de devir, de recuar ou de derivar. Se voltamos costas ao ditado, afirmando o terreno movente da deveniência, podemos estar tentados a dizer: Não somos, mas fazemo-nos. O perigo começa aqui, quando uma certa sedução de errância passa a dizer-nos aquilo que não somos nem temos que ser, e que provavelmente somos mais quando desobedecemos, quando derivamos, quando nos entregamos à sempre perigosa tentação de nos construirmos; quando nos perdemos desse ditado –ordem sem réplica–, e passamos a ser uma linha solta no coração do poema, ou liberdade na liberdade, ou soberana alegria da afirmação.

Quando Simone de Beauvoir escolheu encontrar em si mesma o gesto da sua definição, foi como se uma noite eterna lhe pesasse no pescoço, ferida pela seta dos tempos em que se classificava, em que se ordenava e normalizava – razão do tempo que era preciso fazer sair da razoabilidade. Por isso, mais do que uma definição, concedeu-nos um gesto que entra pela história dentro, para afirmar a contingência de todas as definições. Também por isso, não há chavão mais justamente replicado do que esse: “on ne naît pas femme: on le devient”.

Gostaria de saber que critérios de Edição ou de Tradução seriam adoptados, se tivesse vingado aquele que foi o título inicial de O Segundo Sexo: L`Autre. Suprema ironia se tivéssemos entre mãos O Outro; curiosa adulteração se lhe chamássemos A Outra. De qualquer modo, tornava-se mais evidente a dimensão política da indústria da edição, assim forçada a declarar e justificar, no título, uma orientação hermenêutica assumida desde o frontispício de um dos livros mais repudiados pelos seus contemporâneos e mais celebrados pelas suas herdeiras.

Nesse Segundo Sexo, François Mauriac encontrou um apogeu de “abjecção”, enquanto o Le Figaro denegria a autora (e há insultos de prestígio!) chamando-lhe “a bacante”. Choveram críticas – quase tantas como as que recaíram e ainda hoje recaem sobre esse eterno enfant terrible chamado Jean-Paul Sartre – do centro, à direita, passando por uma larga camada da esquerda, o que só para os distraídos é injustificado.

É que a esquerda (hélas!) também se institui; às vezes não se faz… porque é. Falemos então do que fazemos de nós, Simone, na incerta imensidão de uma folha em branco, onde a mudez das essências reclama a voz inúmera. E hoje, como ontem, devimos qualquer coisa – mulher, homem, negro, mestre ou subalterno –, como chama que permanentemente adia o cristal da definição.

[* Um dia depois de Serralves ter visitado Judith Butler]

quarta-feira, outubro 15, 2008

Poste-se...

Acima de tudo que se poste, no repasto dos verbos novos e na ambição de verves antigas. Poste-se, porque um post é uma espécie de fragmento pós-socrático num pergaminho pré-moderno, um declínio do contínuo que faça de um post uma interrupção. Poste-se ou paste-se, mas em vez de pastar, postemos. E eis que surge – pasme-se – a pergunta, como se fosse pasmo de primeiro post: Como se interrompe uma interrupção?

Como interromper uma descontinuidade, um buraco no tempo, uma voz atenuada algures, num apático – e apóstico – quotidiano? Como prometer a si próprio o seu próprio regresso, recuperando-se do fundo de ansiedade em que, buracos negros de nós mesmos, nos vamos silenciando de nós e de todos os outros?

Não o sabemos realmente nem verdadeiramente. Sabemo-nos apenas saudosos, desejando-nos passo a passo interrompidos, publicados num post – ou pendurados, que seja! Alerta feito. É que a saudade é formulação do que se não formula, ora voraz ora mastigada numa espécie de torpor ontológico; mesmo que seja saudade de um post. Por ela interrompemos esta interrupção e contra ela nos descontinuamos.

Ensaiamos, pois, descontinuar, o que significará sempre reassumir estas interrupções… Como uma espécie de dívida, num lance de atenção por quem desatentamos, num sorriso dedicado a quem dessorrimos, numa libido scribendi da nossa própria escrita.

Num blogue que se reescreve, ininterruptamente interrupto: Poste-se!


Im: Anselm Kiefer, Resurrexit


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