segunda-feira, maio 22, 2006

Confissão desesperada

Ovelha negra no rebanho serializado dos dias, o Domingo deve a sua condição algo viscosa, algo maldita, ao facto de ser um dia de síntese na fria dialéctica em que opomos o plano do trabalho aos picos do conhaque. Domingo, indistinto, não é carne nem é peixe, tendo a propriedade ser ora peixe na carne ora carne no peixe. Mergulhemos de cabeça nesta sopa maldita!

Promovemos o Domingo a antecipação da restante semana, como se fosse a longa manhã de uma sucessão de dias. E trabalhamos. E planificamos. E tentamos, numa gesta laboral, garantir a marcha triunfante do pleito trabalhador. Mas logo o fim-de-semana lhe toca no ombro, ditando o virar de cabeça para um passado recente, carente de regras e de horária sisudez. Aqui, o Domingo surge na sua mais perturbadora propriedade, aguçando também a mais preguiçosa das propriedades humanas: a da metamorfose.

É que o Domingo – numa apropriação injusta para com um muito pouco domingueiro conceito de Deleuze – faz-nos devir-objectos numa colagem excessiva: devir-cama; devir-televisão; devir-telecomando… De súbito, numa imobilidade horizontal que nos condena a um existir televisivo, há uma mão travessa que nos lança nas opções da TV, auto-suficiente e soberana, sobrando da placidez do ser prostrado que, em vez de fazer zapping, é ele próprio um zapping infiltrado nas intermitências do real. Justifica-se assim que a grelha televisiva tipicamente domingueira varie entre um Dança Comigo – dançando o nosso cérebro pelos cotovelos do mundo – e uns Globos de Ouro em que os premiados, por passividade e preguiça, somos nós.

Aí está, pois, a minha desesperada confissão, que é também privilégio dos dias de domingueira fé: eu vi, eu fui, eu estive, numa baba inoperante e quase vexatória, a ver televisão ao Domingo. Eu fui Domingo. Eu passei o dia a ser Domingo. Este ser de elevada sobriedade e fino juízo que alguns se habituaram a apelidar de “Aristóteles” fez-se ontem, mais do que tudo, assinar pelo nome oracular de Domingo-no-Mundo. Mais grave ainda: Gostei! Saia um Globo de Ouro, uma pizza ao domicílio (que Domingo não é carne nem é peixe) e um delirium tremens – e possa esta tão cómoda – oh, Immanuel Kant! – ociosidade confessar ainda o gozo da travessura de uma mão, conduzindo o alvo do nosso olhar pelo Domingo dentro, pela semana fora, pelo dentro-fora que se constrói do ser (de) Domingo!

Para que conste…

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Hummmm, domingozinho de curar ressaca...

2:21 da tarde  
Blogger Rosario Andrade said...

Bom dia Aristoteles!
Pois eu cá gosto de Domingos, mas daqueles em que nao tenho de trabalhar, como ontem. Talvez seja por isso mesmo, porque em alguns deles tenho de trabalhar, os outros sao benvindos e sempre deliciosos!
A televisao, para mim, só em ultimo recurso (raramente, e so para comedias e documentários), se estiver deprimida mesmo, contagiada pela modorra da inactividade.
Boa semana!
Bjico

5:32 da tarde  
Blogger rps said...

Não há como um domingozinho a vegetar. De comando na mão, claro!

12:19 da manhã  
Blogger gaja said...

Agora que Aristóteles confessou ter visto os globos de ouro, já não me sinto tão mal por ter ficado a ver o eurofestival...

6:39 da tarde  
Blogger Fabiana said...

Fico mesmo deprimida quando faço isso. Domingo é, há já alguns anos, dia de teatro!

7:43 da tarde  
Blogger feniana said...

agora sim. senti-me mais perto de ti; senti-te mais terreno! Afinal os filósofos tb gostam de ver televisão, melhor, de ver umas coisitas feitas para as massas...
mas, mesmo assim, ainda fui ao dicionário ver o significado de uma ou outra palavra :)

bjo

11:50 da manhã  
Blogger redonda said...

Normalmente gosto mais de sábados...
Para já vou ficar por aqui porque ainda vou tentar ir hoje de novo ao teatro...

8:05 da tarde  

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