Confissão desesperada

Promovemos o Domingo a antecipação da restante semana, como se fosse a longa manhã de uma sucessão de dias. E trabalhamos. E planificamos. E tentamos, numa gesta laboral, garantir a marcha triunfante do pleito trabalhador. Mas logo o fim-de-semana lhe toca no ombro, ditando o virar de cabeça para um passado recente, carente de regras e de horária sisudez. Aqui, o Domingo surge na sua mais perturbadora propriedade, aguçando também a mais preguiçosa das propriedades humanas: a da metamorfose.
É que o Domingo – numa apropriação injusta para com um muito pouco domingueiro conceito de Deleuze – faz-nos devir-objectos numa colagem excessiva: devir-cama; devir-televisão; devir-telecomando… De súbito, numa imobilidade horizontal que nos condena a um existir televisivo, há uma mão travessa que nos lança nas opções da TV, auto-suficiente e soberana, sobrando da placidez do ser prostrado que, em vez de fazer zapping, é ele próprio um zapping infiltrado nas intermitências do real. Justifica-se assim que a grelha televisiva tipicamente domingueira varie entre um Dança Comigo – dançando o nosso cérebro pelos cotovelos do mundo – e uns Globos de Ouro em que os premiados, por passividade e preguiça, somos nós.
Aí está, pois, a minha desesperada confissão, que é também privilégio dos dias de domingueira fé: eu vi, eu fui, eu estive, numa baba inoperante e quase vexatória, a ver televisão ao Domingo. Eu fui Domingo. Eu passei o dia a ser Domingo. Este ser de elevada sobriedade e fino juízo que alguns se habituaram a apelidar de “Aristóteles” fez-se ontem, mais do que tudo, assinar pelo nome oracular de Domingo-no-Mundo. Mais grave ainda: Gostei! Saia um Globo de Ouro, uma pizza ao domicílio (que Domingo não é carne nem é peixe) e um delirium tremens – e possa esta tão cómoda – oh, Immanuel Kant! – ociosidade confessar ainda o gozo da travessura de uma mão, conduzindo o alvo do nosso olhar pelo Domingo dentro, pela semana fora, pelo dentro-fora que se constrói do ser (de) Domingo!
Para que conste…
7 Comments:
Hummmm, domingozinho de curar ressaca...
Bom dia Aristoteles!
Pois eu cá gosto de Domingos, mas daqueles em que nao tenho de trabalhar, como ontem. Talvez seja por isso mesmo, porque em alguns deles tenho de trabalhar, os outros sao benvindos e sempre deliciosos!
A televisao, para mim, só em ultimo recurso (raramente, e so para comedias e documentários), se estiver deprimida mesmo, contagiada pela modorra da inactividade.
Boa semana!
Bjico
Não há como um domingozinho a vegetar. De comando na mão, claro!
Agora que Aristóteles confessou ter visto os globos de ouro, já não me sinto tão mal por ter ficado a ver o eurofestival...
Fico mesmo deprimida quando faço isso. Domingo é, há já alguns anos, dia de teatro!
agora sim. senti-me mais perto de ti; senti-te mais terreno! Afinal os filósofos tb gostam de ver televisão, melhor, de ver umas coisitas feitas para as massas...
mas, mesmo assim, ainda fui ao dicionário ver o significado de uma ou outra palavra :)
bjo
Normalmente gosto mais de sábados...
Para já vou ficar por aqui porque ainda vou tentar ir hoje de novo ao teatro...
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