segunda-feira, maio 29, 2006

Recuos da insónia

A insónia é um estado difuso. Ela promove, nos corredores da existência, um certo estado de recuo face a tudo, que é a tradução mais lógica de não abandonar, pelo ritual do sono, os ritmos do dia anterior. Se o sono é a sucessão dos dias, a insónia faz com que persistamos no dia passado, indiferente à noite que locomove o calendário, a cronologia, a contagem decrescente da nossa efémera passagem pelo mundo. Despojados do sono, prostramo-nos na imobilidade do dia de ontem, não sendo o hoje senão um ligeiro ardor nas pupilas fotofóbicas!

Falo, por isso, do recuo da insónia, sublinhando que um recuo não é necessariamente um atraso de vida, mas uma vida que se dá à difícil tarefa de viver em atraso. Insone, pois, consolo-me no elogio do recuo, condição de toda a progressão, de todo o movimento: no gesto recuado do discóbolo; no recuo da sílaba aconchegada ao poema; no modo recuado de um olhar que, encandeado pelo arrojo da carícia, se dobra em si mesmo, num fechar de pálpebras sem sono.

Recuemos, ou melhor, recapitulemos.

Se o dia começa com um café e com o jornal, as tardes de fim-de-semana, num ritual de recuo, volvem-se em manhãs, quando o sono ou a sua ausência fazem dilatar os horários para um futuro anterior. Aqui, as noites em claro vão toldando juízos e consciências, em equívocos cuja condição de recuo transforma em insofismáveis verdades. Imaginemos um jornal previamente comprado, transportado para o café, lido, devorado, compreendido numa insone mastigação… Imaginemos que, após cuidada leitura, descobrimos uma estranha coincidência entre as notícias deste dia e as de um outro, recuado, que parece espreitar entre o estado de semi-consciência para recordar que ele também é uma data em insónia. Revolvemos os meandros da nossa capacidade crítica, dizendo desoladamente que não, que vivemos tristes jornadas em que nenhuma novidade se dá, nenhuma se vende, que somos apenas habitantes de aluguer num mundo repetido página a página, parágrafo a parágrafo. Numa ruminação sôfrega dizemos, revolvendo uma música dos Velvet Underground ou uma máxima que, em recuo, pulula por livros de má poesia e verve desencantada: Nasci fora de época! É recuada a minha aptidão para lidar com o tempo… Recuo! Recuo!

Mas de repente, de súbito, como um estampido nas orelhas moucas da crítica apressada, verificamos, não sem a estranheza devida, que os factos afinal têm algo a dizer deste pérfido anátema sobre os dias dormentes. Olhamos para a página do jornal e, reiterando a sonolência dessas notícias de insónia, deparamos com a data, tiranicamente impressa no sopé da página gasta: 13 de Maio.

Recusamos o engano, o erro, a distracção. Neste episódio apenas se revelou, por caminhos ínvios, uma sentença teológica. Foi a transcendência quem nos fez recuar para esse dia de Graça divina, obrigando-nos a uma penosa peregrinação em busca do jornal correcto. Houve dedo divino nesta sentença que, lá do alto, ordena-nos direito por linhas tortas: Vai dormir, pá! Uma coisa é o recuo, outra é o exagero que o muito tempo de vigília acarreta invariavelmente… Por isso mesmo, submissos, decidimos progredir do 13 de Maio para a data correcta através de um sono redentor, acatando a mensagem de divina natureza. Ela multiplica o seu consubstancial saber infinito. É que, como todos sabemos, dEUS não dorme!

2 Comments:

Blogger salomé said...

E mesmo quando o sono nos vence, a insónia – dias que não se querem adormecidos – persiste. No desdobrar dos sonhos – em que passados e futuros colidem num momento sem tempo.

1:37 da tarde  
Blogger feniana said...

dedico-te este poema pelo teu post. adorei-o. tenho duas insónias por semana. as duas noites, por semana, em que leio poesia. em mais nenhuma altura lhe pego. de dia, só prosa.

"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar
irritado algumas vezes, mas não esqueço
que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena
viver, apesar de todos os desafios,
incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos
problemas e tornar-se um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser
capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um "não".
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."


(Fernando Pessoa)

9:33 da tarde  

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