Kurti

É que há uma certa vocação cínica que nos associa – já te expliquei, lembras-te? – a ti, no pastoreio que trazes na raça e que te arruma num género, e que por isso mesmo nunca exerceste; a mim, a nós, a todos a quem Heidegger lançou a inconformada vocação de “pastores do ser”. E como não lembrar Foucault, quando elevou a condição do cínico (Kynikós, em grego, classicamente associado a uma desprestigiada condição canina) àquele que mordia, com raiva e acinte, as canelas do real, gangrenando-as em explosão transformadora e sofreguidão de sabor… Sim, talvez sejamos todos uma certa mordedura em potência, uma sanha contida, uma natureza bravia vulgarmente açaimada à incúria, ao laxismo, ao vício domesticador do equilíbrio – um pouco como tu, mudo e dócil aos elementos que te ilibaram da luta sem dono pela sobrevivência e alimento.
Estou por isso há algum tempo para te dedicar um post. Uma pequena reprimenda que dispense o jornal castigador, que já nos basta a passagem dos dias a açoitar-nos a alma num uivo, trazendo saudades desse lobo negro e bravio que, talvez, nunca tenhamos deixado de ser. Sem jornal, lamento apenas a inutilidade desse teu poder de ataque, a solidez do golpe da tua mandíbula que apenas comprimiu carne já morta, já exangue; lamento ainda a tua domesticação tão conformada, tão aquietada a episódicos abanares de cauda ou espantadas saudações a iguarias dadas fora de horas e raras, tão raras quanto o despertar belicoso desse teu ser-animal.
Mas depois da reprimenda, há sempre a regeneradora carícia e o desvelo com que te ofereces ao conforto, e o agradeces, e o fazes prevalecer. É nele que repousas e é por ele que, noite fora, dormes apenas parcialmente, montando guarda a um perigo farejado… ou imaginado… ou palpitante de frio, na irrequieta solidão da paz nocturna. Mesmo na placidez da orelha murcha, é por vezes necessário – como nos ensinas em todos os instantes – eriçar o pêlo, latir ao fragor da estranheza, afilar caninos ou, em ensaios furtivos, escavar a dureza do solo para, livre por uma vez, abandonar a flecha do dorso ao galope incendiado. Ensinas então a regressar – a espaços, pelo menos - a uma desagrilhoada condição sem género, sem raça, sem coleira, até que a manhã, inundando de luz as mais apagadas galerias da alma, desarme a vigília e nos deixe enroscados à rotineira clareza do dia.
Há tanto tempo queria eu dedicar-te um post!…
5 Comments:
curti!
ão, ão!!
Eu também.
perdoem-me...mas este rapaz é um espanto! a partir do kurti, chegar aqui...bem...és um espanto filósofo! ;)
Concluo que o "Kurti" é de esquerda, afrancesado, germanizado (menos mal) e cão, como nós.
O texto, como sempre, é excelente.
Bom dia!!!!!
Quando o meu pai dava uma codea a burra Ruca dizia sempre "Aposto que ela quer mais esta codica do que uma nota de 10 milreis!". Provavelmente o Kurti preferia um osso... mas o post é uma delicia!
Bjico!
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