terça-feira, junho 06, 2006

Kurti

Já ando há algum tempo para te dedicar um post. Sei que preferias um suculento osso, uma bola que pudesses surripiar sem que ninguém mais ta tirasse ou simplesmente uma furtiva dentada na impertinente vizinha do lado, que nos irrita a ambos. Porém, é assim mesmo, que se há-de fazer?... Rosnamos aos destinos que nos dão, que nos perturbam, sendo menos malévolos e mais ensonados, na ração de tédio que dia-a-dia nos alimenta e nos mói os instintos.

É que há uma certa vocação cínica que nos associa – já te expliquei, lembras-te? – a ti, no pastoreio que trazes na raça e que te arruma num género, e que por isso mesmo nunca exerceste; a mim, a nós, a todos a quem Heidegger lançou a inconformada vocação de “pastores do ser”. E como não lembrar Foucault, quando elevou a condição do cínico (Kynikós, em grego, classicamente associado a uma desprestigiada condição canina) àquele que mordia, com raiva e acinte, as canelas do real, gangrenando-as em explosão transformadora e sofreguidão de sabor… Sim, talvez sejamos todos uma certa mordedura em potência, uma sanha contida, uma natureza bravia vulgarmente açaimada à incúria, ao laxismo, ao vício domesticador do equilíbrio – um pouco como tu, mudo e dócil aos elementos que te ilibaram da luta sem dono pela sobrevivência e alimento.

Estou por isso há algum tempo para te dedicar um post. Uma pequena reprimenda que dispense o jornal castigador, que já nos basta a passagem dos dias a açoitar-nos a alma num uivo, trazendo saudades desse lobo negro e bravio que, talvez, nunca tenhamos deixado de ser. Sem jornal, lamento apenas a inutilidade desse teu poder de ataque, a solidez do golpe da tua mandíbula que apenas comprimiu carne já morta, já exangue; lamento ainda a tua domesticação tão conformada, tão aquietada a episódicos abanares de cauda ou espantadas saudações a iguarias dadas fora de horas e raras, tão raras quanto o despertar belicoso desse teu ser-animal.

Mas depois da reprimenda, há sempre a regeneradora carícia e o desvelo com que te ofereces ao conforto, e o agradeces, e o fazes prevalecer. É nele que repousas e é por ele que, noite fora, dormes apenas parcialmente, montando guarda a um perigo farejado… ou imaginado… ou palpitante de frio, na irrequieta solidão da paz nocturna. Mesmo na placidez da orelha murcha, é por vezes necessário – como nos ensinas em todos os instantes – eriçar o pêlo, latir ao fragor da estranheza, afilar caninos ou, em ensaios furtivos, escavar a dureza do solo para, livre por uma vez, abandonar a flecha do dorso ao galope incendiado. Ensinas então a regressar – a espaços, pelo menos - a uma desagrilhoada condição sem género, sem raça, sem coleira, até que a manhã, inundando de luz as mais apagadas galerias da alma, desarme a vigília e nos deixe enroscados à rotineira clareza do dia.

Há tanto tempo queria eu dedicar-te um post!…

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

curti!
ão, ão!!

8:22 da tarde  
Blogger Fabiana said...

Eu também.

10:14 da tarde  
Blogger feniana said...

perdoem-me...mas este rapaz é um espanto! a partir do kurti, chegar aqui...bem...és um espanto filósofo! ;)

10:40 da manhã  
Blogger António Conceição said...

Concluo que o "Kurti" é de esquerda, afrancesado, germanizado (menos mal) e cão, como nós.
O texto, como sempre, é excelente.

5:16 da tarde  
Blogger Rosario Andrade said...

Bom dia!!!!!
Quando o meu pai dava uma codea a burra Ruca dizia sempre "Aposto que ela quer mais esta codica do que uma nota de 10 milreis!". Provavelmente o Kurti preferia um osso... mas o post é uma delicia!
Bjico!

3:36 da tarde  

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