quinta-feira, março 19, 2009

Enfim, um comentador!

Não há, nos jornais e restantes Media, "comentadores" portugueses.
Regra geral, não há alternativa: ou se é comentador ou se é português. O dom analítico, a vocação da síntese e a poupada ironia são alguns dos critérios de eleição dos comentadores que tendencialmente não abundam por quem tem passaporte luso... Claro que há excepções, apesar de tudo discutíveis.

Houve quem tivesse a ironia cruel de afirmar que Vasco Pulido Valente seria o mais “lúcido” (sic) comentador português. Discordo do lúcido, duvido do comentador, mas sublinho o português; escreve com fel, numa apagada e vil tristeza demasiado negra para ser real e demasiado grotesca para não ser castiça – mais português, morre-se, como dizia o saudoso Eduardo Prado Coelho. No que toca à arte do comentário, o nosso território é tradicionalmente ermo e desabitado. Quando vamos para o comentário, lá nos aparece a veia poética, lá tropeçamos no perfil de Bandarra – a metáfora e a profecia inundam o texto, que passa a ter vocação marítima e uma vaga tendência para a heteronímia. Perde-se o comentário e ganha-se outra coisa, sendo esta outra coisa, com qualidade e oportunidade variáveis, que mais abunda pelos Media de Portugal… Até que surgiu Rui Tavares.

Tem a qualidade rara do formulador. Expõe as questões desassombradamente, sem grandes pruridos mas com um raro e muito pascaliano esprit de finesse. Se dúvidas houvesse, então leia-se isto.

sábado, março 07, 2009

Sá da Bandeira: 6/3

Morro
Morro


No Altar de ti

terça-feira, março 03, 2009

A Questão MP3

Vejam o seu ar CR7, saído do suburbano T1 pago com ajuda do Porta 65. Apreciem-no a sair do Lote 8, do arruamento 4, a ajustar os tampões do mp3 aos já muito adornados ouvidos. No outro lado, está o janota trintão, vagamente yuppie que, após uma noite de zapping e de sonhos de holding, ajusta ao fato completo da Zara o fio do sofisticado ipod. Encontram-se no metro, abominam-se muito ligeiramente, até que a música lhes dissolve o convívio e lhes projecta as diferenças para o interior musical deles mesmos. Chamemos à lei que a situação ilustra a «questão mp3».

Convém não subestimar a «questão mp3». A verdade dos pedestres reconsidera-se quando o quotidiano se sonoriza, multiplicado por espaços de bandas sonoras infinitas. A questão mp3 converte a experiência colectiva da cidade numa espécie de dança privada; um delírio intermitente, pessoal e de ritmos diversos. Pela rua, pelo metro, no próprio local de trabalho, a música marca o tom, sem que saibamos verdadeiramente até que ponto alenta trabalhos para níveis de produtividade inatingíveis ao som de qualquer invasora telefonia. A questão mp3 e seus reflexos laborais, pessoais e sociais; a distância imensa entre o mp3 e o Walkman, que o Dimanche já explorou... tudo nos afirma a necessidade de não se subestimar a questão mp3.


Sim, claro que comprei um mp3. E é claro que, agora, quando já não subestimo a questão mp3, acho menos estranho esse colar estridentemente repercutivo que abraça os meus concidadãos por ruas, praças e descaminhos. E suspeito que, para lá de estatísticas, inquéritos e sondagens, a selecção do mp3 seja a mais eloquente das amostras no que toca a disposições, influências, intervalos geracionais. Que música ouço quando chego aqui, quando me preparo para ir para ali, quando me desloco ou decido permanecer? Que locais são mais e menos musicados? E que privação social nutre realmente um leitor de mp3?...

Em qualquer ponto da cidade, talvez uma canção escutada seja comum, e esteja ao mesmo tempo, e se cruze no mesmo espaço – e aproxime seres numa coincidência inusitada e secreta. Talvez a música estabeleça fios de comunicação que se tocam algures, sem que ninguém o saiba verdadeiramente. E aí estamos menos sós, mesmo que a música embale um percurso melancolicamente isolado, que cruza avenidas impessoais com a canção aconchegada ao ouvido. A solidão musical de quem, na compenetração do seu mp3, transporta timbres coincidentes para o lado nenhum onde a cidade anoitece.


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