O que é uma cama?
Uma cama é um corpo de engenharia discreta, em que a estética descansa e a tecnologia desfalece na funcionalidade imediata. É que, como a rosa de Gertrude Stein, uma cama é uma cama é uma cama… e nada na natureza da cama nos convida a finas interrogações quanto à sua forma e progresso. Discute-se, por vezes, virtudes e propriedades de camas redondas, de camas de água, de nupciais leitos de moldura em coração ou de fraternais e corporativos beliches. Vinga o pormenor, mas sucumbe a substância, e nada se aclama numa cama, como nada na cama se proclama – ela descansa nos ferrolhos da história, como se dormisse em si mesma, sem lençóis de seda e sem pijama.
Capacitados deste destino inglório, convém não dormirmos na rede da ligeireza, sem admitir que até uma cama se eleva da conceptualização que a esgana, fazendo elevar o tecido da sua subtil filigrana. É que a cama – e isso sabe ela - é uma realidade plural de funções diversas, de ritmos iracundos, ou serenos, ou plurais, ou dispersivos… Vejam como assiste, impassível como nobre dama, à alucinação do sonho, ao tempestuoso pesadelo, a estados intermédios ou a deflagrações desejantes. Reparem na discrição do seu acolchoado horizonte, que acama entorpecimentos e aviva a reactivação do despertar, das blindagens quotidianas ou das armas, físicas ou retóricas, de auto e hetero-censura. Tudo acama a cama e a ela ninguém aclama!
Sempre modesta e apagada, a cama desvia a inquietude que o estado diurno reclama; em si congemina o sossego que o seu conforto declama; conspira o silêncio nocturno que do seu repouso emana. Porém, ninguém subestime a potência da sua resguardada chama. É que tempos há em que a cama, reclamando a sua apagada matriz, sobressalta-se no lugar de sossego que é e institui. Nestes momentos, revoltada, a cama rasga o silêncio num resvalado estertor, atravessa soalhos e paredes em uivos e rugidos de molas e ferrugem, revelando assim a sua natureza animal, e vulcânica, e desenfreada. A cama range na sua base, desloca-se intermitentemente, deslocaliza-se em arrastos de mamute – a cama, essa cigana!
Ouve-se então música de cama. E recostando a cabeça ao travesseiro de Sto. Agostinho, vemos a música como “marca impressa na água, que não pode formar-se sem que mergulhemos um corpo na água nem permanecer quando o retiramos”. Substitua-se a palavra “água” pela palavra “cama” e determinaríamos uma causa para esta espécie de música. Mas convém não ceder a facilidades. Insistindo na mágica compleição de tudo, vemos no ranger de uma cama uma grácil lamentação por uma posição acessória na hierarquia dos objectos. E por isso mesmo, numa medida sustentada in lacrimae rerum, sugerimos que a cama seja erigida em instrumento musical, acrescentando-lhe um metrónomo e honrando, igualmente, as molas e mecanismos da sua subtil engenharia. Com este aditamento a esta mais-que-mobília, cremos que, se a cama insistir em cantar, construirá o seu canto numa harmonia que a afaste do lamento, do seu ranger carcerário, da melancolia insistente que sobre o seu ser se derrama… Porque uma cama é uma cama é uma cama!
(Post dedicado, com amizade e admiração, aos meus vizinhos de cima)