terça-feira, maio 30, 2006

O que é uma cama?

Sujeitamos o poder de definição à cama auspiciosa. No entanto, aqui, recusamos deitar-nos em fáceis cogitações face à natureza da cama, por nos parecer que este objecto, de sólida compleição e de usos variados, figura entre os mais subestimados na cinza quotidiana.

Uma cama é um corpo de engenharia discreta, em que a estética descansa e a tecnologia desfalece na funcionalidade imediata. É que, como a rosa de Gertrude Stein, uma cama é uma cama é uma cama… e nada na natureza da cama nos convida a finas interrogações quanto à sua forma e progresso. Discute-se, por vezes, virtudes e propriedades de camas redondas, de camas de água, de nupciais leitos de moldura em coração ou de fraternais e corporativos beliches. Vinga o pormenor, mas sucumbe a substância, e nada se aclama numa cama, como nada na cama se proclama – ela descansa nos ferrolhos da história, como se dormisse em si mesma, sem lençóis de seda e sem pijama.

Capacitados deste destino inglório, convém não dormirmos na rede da ligeireza, sem admitir que até uma cama se eleva da conceptualização que a esgana, fazendo elevar o tecido da sua subtil filigrana. É que a cama – e isso sabe ela - é uma realidade plural de funções diversas, de ritmos iracundos, ou serenos, ou plurais, ou dispersivos… Vejam como assiste, impassível como nobre dama, à alucinação do sonho, ao tempestuoso pesadelo, a estados intermédios ou a deflagrações desejantes. Reparem na discrição do seu acolchoado horizonte, que acama entorpecimentos e aviva a reactivação do despertar, das blindagens quotidianas ou das armas, físicas ou retóricas, de auto e hetero-censura. Tudo acama a cama e a ela ninguém aclama!

Sempre modesta e apagada, a cama desvia a inquietude que o estado diurno reclama; em si congemina o sossego que o seu conforto declama; conspira o silêncio nocturno que do seu repouso emana. Porém, ninguém subestime a potência da sua resguardada chama. É que tempos há em que a cama, reclamando a sua apagada matriz, sobressalta-se no lugar de sossego que é e institui. Nestes momentos, revoltada, a cama rasga o silêncio num resvalado estertor, atravessa soalhos e paredes em uivos e rugidos de molas e ferrugem, revelando assim a sua natureza animal, e vulcânica, e desenfreada. A cama range na sua base, desloca-se intermitentemente, deslocaliza-se em arrastos de mamute – a cama, essa cigana!

Ouve-se então música de cama. E recostando a cabeça ao travesseiro de Sto. Agostinho, vemos a música como “marca impressa na água, que não pode formar-se sem que mergulhemos um corpo na água nem permanecer quando o retiramos”. Substitua-se a palavra “água” pela palavra “cama” e determinaríamos uma causa para esta espécie de música. Mas convém não ceder a facilidades. Insistindo na mágica compleição de tudo, vemos no ranger de uma cama uma grácil lamentação por uma posição acessória na hierarquia dos objectos. E por isso mesmo, numa medida sustentada in lacrimae rerum, sugerimos que a cama seja erigida em instrumento musical, acrescentando-lhe um metrónomo e honrando, igualmente, as molas e mecanismos da sua subtil engenharia. Com este aditamento a esta mais-que-mobília, cremos que, se a cama insistir em cantar, construirá o seu canto numa harmonia que a afaste do lamento, do seu ranger carcerário, da melancolia insistente que sobre o seu ser se derrama… Porque uma cama é uma cama é uma cama!

(Post dedicado, com amizade e admiração, aos meus vizinhos de cima)

segunda-feira, maio 29, 2006

Recuos da insónia

A insónia é um estado difuso. Ela promove, nos corredores da existência, um certo estado de recuo face a tudo, que é a tradução mais lógica de não abandonar, pelo ritual do sono, os ritmos do dia anterior. Se o sono é a sucessão dos dias, a insónia faz com que persistamos no dia passado, indiferente à noite que locomove o calendário, a cronologia, a contagem decrescente da nossa efémera passagem pelo mundo. Despojados do sono, prostramo-nos na imobilidade do dia de ontem, não sendo o hoje senão um ligeiro ardor nas pupilas fotofóbicas!

Falo, por isso, do recuo da insónia, sublinhando que um recuo não é necessariamente um atraso de vida, mas uma vida que se dá à difícil tarefa de viver em atraso. Insone, pois, consolo-me no elogio do recuo, condição de toda a progressão, de todo o movimento: no gesto recuado do discóbolo; no recuo da sílaba aconchegada ao poema; no modo recuado de um olhar que, encandeado pelo arrojo da carícia, se dobra em si mesmo, num fechar de pálpebras sem sono.

Recuemos, ou melhor, recapitulemos.

Se o dia começa com um café e com o jornal, as tardes de fim-de-semana, num ritual de recuo, volvem-se em manhãs, quando o sono ou a sua ausência fazem dilatar os horários para um futuro anterior. Aqui, as noites em claro vão toldando juízos e consciências, em equívocos cuja condição de recuo transforma em insofismáveis verdades. Imaginemos um jornal previamente comprado, transportado para o café, lido, devorado, compreendido numa insone mastigação… Imaginemos que, após cuidada leitura, descobrimos uma estranha coincidência entre as notícias deste dia e as de um outro, recuado, que parece espreitar entre o estado de semi-consciência para recordar que ele também é uma data em insónia. Revolvemos os meandros da nossa capacidade crítica, dizendo desoladamente que não, que vivemos tristes jornadas em que nenhuma novidade se dá, nenhuma se vende, que somos apenas habitantes de aluguer num mundo repetido página a página, parágrafo a parágrafo. Numa ruminação sôfrega dizemos, revolvendo uma música dos Velvet Underground ou uma máxima que, em recuo, pulula por livros de má poesia e verve desencantada: Nasci fora de época! É recuada a minha aptidão para lidar com o tempo… Recuo! Recuo!

Mas de repente, de súbito, como um estampido nas orelhas moucas da crítica apressada, verificamos, não sem a estranheza devida, que os factos afinal têm algo a dizer deste pérfido anátema sobre os dias dormentes. Olhamos para a página do jornal e, reiterando a sonolência dessas notícias de insónia, deparamos com a data, tiranicamente impressa no sopé da página gasta: 13 de Maio.

Recusamos o engano, o erro, a distracção. Neste episódio apenas se revelou, por caminhos ínvios, uma sentença teológica. Foi a transcendência quem nos fez recuar para esse dia de Graça divina, obrigando-nos a uma penosa peregrinação em busca do jornal correcto. Houve dedo divino nesta sentença que, lá do alto, ordena-nos direito por linhas tortas: Vai dormir, pá! Uma coisa é o recuo, outra é o exagero que o muito tempo de vigília acarreta invariavelmente… Por isso mesmo, submissos, decidimos progredir do 13 de Maio para a data correcta através de um sono redentor, acatando a mensagem de divina natureza. Ela multiplica o seu consubstancial saber infinito. É que, como todos sabemos, dEUS não dorme!

segunda-feira, maio 22, 2006

Confissão desesperada

Ovelha negra no rebanho serializado dos dias, o Domingo deve a sua condição algo viscosa, algo maldita, ao facto de ser um dia de síntese na fria dialéctica em que opomos o plano do trabalho aos picos do conhaque. Domingo, indistinto, não é carne nem é peixe, tendo a propriedade ser ora peixe na carne ora carne no peixe. Mergulhemos de cabeça nesta sopa maldita!

Promovemos o Domingo a antecipação da restante semana, como se fosse a longa manhã de uma sucessão de dias. E trabalhamos. E planificamos. E tentamos, numa gesta laboral, garantir a marcha triunfante do pleito trabalhador. Mas logo o fim-de-semana lhe toca no ombro, ditando o virar de cabeça para um passado recente, carente de regras e de horária sisudez. Aqui, o Domingo surge na sua mais perturbadora propriedade, aguçando também a mais preguiçosa das propriedades humanas: a da metamorfose.

É que o Domingo – numa apropriação injusta para com um muito pouco domingueiro conceito de Deleuze – faz-nos devir-objectos numa colagem excessiva: devir-cama; devir-televisão; devir-telecomando… De súbito, numa imobilidade horizontal que nos condena a um existir televisivo, há uma mão travessa que nos lança nas opções da TV, auto-suficiente e soberana, sobrando da placidez do ser prostrado que, em vez de fazer zapping, é ele próprio um zapping infiltrado nas intermitências do real. Justifica-se assim que a grelha televisiva tipicamente domingueira varie entre um Dança Comigo – dançando o nosso cérebro pelos cotovelos do mundo – e uns Globos de Ouro em que os premiados, por passividade e preguiça, somos nós.

Aí está, pois, a minha desesperada confissão, que é também privilégio dos dias de domingueira fé: eu vi, eu fui, eu estive, numa baba inoperante e quase vexatória, a ver televisão ao Domingo. Eu fui Domingo. Eu passei o dia a ser Domingo. Este ser de elevada sobriedade e fino juízo que alguns se habituaram a apelidar de “Aristóteles” fez-se ontem, mais do que tudo, assinar pelo nome oracular de Domingo-no-Mundo. Mais grave ainda: Gostei! Saia um Globo de Ouro, uma pizza ao domicílio (que Domingo não é carne nem é peixe) e um delirium tremens – e possa esta tão cómoda – oh, Immanuel Kant! – ociosidade confessar ainda o gozo da travessura de uma mão, conduzindo o alvo do nosso olhar pelo Domingo dentro, pela semana fora, pelo dentro-fora que se constrói do ser (de) Domingo!

Para que conste…

quinta-feira, maio 18, 2006

!!!

Uma sílaba começada no limiar dos lábios, qualquer coisa como um múrmurio desintegrado numa surpresa átona, uma sigla de mistério nocturno, um gesto, um lamento, um nada - algo desencadeou uma menos que revolta, rasgada na garganta em algo mais amplo que a surpresa... Quando, de tabuleiro em punho, preparados para degustar o magro jantar com satisfação imodesta de reis, decidimos dar ouvidos ao apelo que nos retirava do ascetismo, convidando a repousar o ardor investigativo no travesseiro realista do telejornal, este desfecho estava longe da predição mais cinzenta.

Escrevo já recomposto, já refeito, já levantado do chão, como convida o título empenhado de José Saramago. Mas algo persiste em mim teimosamente apegado ao achaque, como se a trepidação do corpo não fosse senão a busca saudosa do sismo inicial. E escrevo tremendo!

Ao ligar a televisão, já com o ouvido adoçado pela voz estilizada do pivô, eis o que me aparece:



A crer nos Vascos Pulidos Valentes deste mundo, sempre prontos a debitar a gosma apocalíptica anunciando a guerra dos mundos e das civilizações, temos todo o mundo árabe a rir fartamente de nós. Felizes deles! Antes a bomba!...

quarta-feira, maio 17, 2006

Lamento

Estou farto do último "post" e ainda não tive tempo para "postar"!

domingo, maio 14, 2006

Do destino pouco razoável das terras de Carvalhos

Quem continua? Quem permanece? Nos Carvalhos, a entoação destas questões vai latejando, como se fosse uma insígnia de empréstimo ou uma máxima impregnada nos mais involuntários corredores do cérebro dos indígenas. É que esta terra é de passagem, na secante da auto-estrada que lhe roça os limites, não sendo para muitos senão uma tabuleta, uma porta de entrada, uma portagem erigida como ponte levadiça nos caminhos das nossas deambulações. Por isso mesmo, de longe a longe, há o confronto com um novo caminhante que, perdido, encontra nos Carvalhos o sítio de eleição para a sua condição mortal de estar e de ser de passagem.

13 de Maio. Nos antes deste dia de sacras afecções, vão passando peregrinos aos magotes, cuja passagem pelos Carvalhos reproduz numa via sacra o seu destino mais terreno e secular… Esta terra é de passagem: Quem continua? Quem permanece? E a resposta aparece, invariavelmente, nos dias subsequentes ao 13 de Maio, quando a terra de Carvalhos, personificando a mater familias que de todos cuida e a ninguém despreza, ao contar o tamanho da população que a compõe, encontra um acréscimo de candidatos ao seu braço protector. E aqui se encontra a explicação para um dos mais sinuosos mistérios desta terra sem poiso: Por que estranha razão – pergunta-se, em conspícuas dissertações – há tantos malucos neste sítio? Que estranho destino aqui os fixa, na rigidez sempre doida que cabe a uma localidade de passagem?

Em mal disfarçada culpa, os peregrinos vão passando, sem que se desconfie que nestes caminheiros reside a solução de tão intrincado enigma. Mesmo as jornadas pedestres mais embebidas em fé sofrem de falta de paciência, de nervos de celofane, de finas tiras de pachorra. E em todas as jornadas pedestres, principalmente as que se alicerçam sob inspiração do misterium tremendum, abundam os malucos, os visionários, os desenquadrados e os cromos. Adicionando a tal falta de paciência à abundância de tais entidades, temos uma espécie de panela de pressão peregrina, explodindo no exacto momento em que eclode no horizonte a tal terra de passagem – os Carvalhos, com certeza. E é aqui que surge a tentação de os abandonar, de fazer o maluco de lá do sítio, por mil desígnios e artimanhas, cidadão honorário desta terra prometida. E lá segue, aliviada, a caravana!

Por isto mesmo, trememos de expectativa. Quem nos calhará este ano? Que novo maluco para cá migrará, no voltejar da cabeça e na instabilidade dos humores com que se desenha o perfil da macro-categoria do “cromo”?! A questão ecoa, na mesma fremência ansiosa com que, carvalhenses que nunca o são realmente, articulam o seu desalinho de juízo com a natureza essencial do seu não permanecer. Não permanecer no sítio, na terra, não permanecer sequer no sentido e nas suas instâncias que, nas cabeças de todos, funciona como terras de Carvalhos de viés com a estrada larga, como desvio, como apeadeiro da razão consequente. Quem continua? Quem permanece? Que novo maluco desembocará nos Carvalhos?

sexta-feira, maio 12, 2006

Retoma

Amarga-se o café na boca e os calafrios vão percorrendo o corpo desgovernado. Os dias anteriores, lentos e trabalhosos, denunciavam a nova condição, a cada esquina e a cada passo. Na distracção ritmada dos percursos e dos discursos, lá saia, de si para si, a frase involuntária: - Isto dava um post! Mas mesmo os dias mais quentes de Maio conseguem ser pródigos em baldes de água fria, enregelando e tolhendo os costados da alma: - Não. Já não há blogue… Mataste-o, lembras-te?... Seu assassino cibernético, giga-genocida, blogo-carniceiro… Nojo!

Mesmo assim, a consciência vai amansando com o álibi das obrigações, do tempo que escasseia, do magro consolo dos comentários e das passagens furtivas em páginas alheias. Frágil mordaça a calar a dependência; azeda consolação!

Em desespero de causa, há a uma bóia de racionalidade insuflada por fria estatística. É que, como é sabido, os blogues entram pelos ofícios acima deitando rendimentos abaixo. Há sempre este argumento, comprovado pela imaginação sorridente de um funcionário de balcão ou de escritório, alheio à imensa turba que o solicita ou à pilha de papéis que o vigia, disfarçando a ociosa tarefa numa despersonalização aflitiva: nega a dedicação às gajas, mascara o ar “boemium” ou o fino paladar de “gourmet”, oculta o ar matreiro com que se abstém de trabalhar para… andar pelos blogues. Cenário a evitar, mesmo que seja o mais memorioso fado do trabalhador português. É que o país precisa de formigas trabalhadoras, que sabem que a sua luta não passa por qualquer blogue que seja seu, tampouco por pratos preguiçosos de caracóis em marinas, mas sim por um escaldado e ardente sentido de responsabilidade – quanto mais quente, melhor!

Calem-se, por isso, todas as vocações brolguistas (que até se me confunde a ortografia neste apelo!), confirmando-se que o blogue está morto, enterrado, abafado em terra e comido por torrões e lama. Há que devolver ao lodo esse passatempo maldito!

Mas mesmo a terra mais funérea tem interrupções, húmus, bolsas impensadas de ar que fazem com que, a qualquer momento, a hipótese rebelde se adiante:

E se da terra saísse um braço e atirasse uma rosa para o espaço?

Interrupção decisiva, ressuscitada e brandida como rosa no espaço… Uma vez mais, mesmo sem querer, Interrupções!

quinta-feira, maio 11, 2006

"E se de repente saísse da terra um braço e atirasse uma rosa para o espaço"?

José Gomes Ferreira




referer referrer referers referrers http_referer