Da falibilidade das maiorias

A Rua 31 de Janeiro, em pleno coração da Invicta, é um autêntico palco para o formigueiro humano, oferecendo uma perspectiva paisagística sobre o modo como o Homo Sapiens se move e locomove. Apreciemos então a rua, cheia de enfileirada gente. Imaginemos esse cenário sob chuva indecisa e tempo cinzento, de tal modo que, a espaços, um intermitente aguaceiro espirre sobre a multidão cabisbaixa. O grande problema do transeunte está em saber quando a chuva é real ou apenas psicológica, ou seja, quando começa a ser realmente válida a utilização do guarda-chuva ou, ao contrário, quando ele é apenas a face mais visível de um tipo de histeria colectiva viciada em secura e varas de alumínio. A resposta é simples, evidente, mas transporta uma conotação política verdadeiramente alarmante para as modas referendárias e ditaduras da maioria.
Assim, se numa rua populosa a maioria dos cidadãos transportar o guarda-chuva aberto e um deles (um único) o transportar fechado, o mais provável é que já não esteja a chover, dando razão a um e fazendo com que todos os outros incorram em erro. Ao contrário, quando as pingas já inundam a cabeça de uma forma tão evidente que invalide todas as benfazejas impressões de que tal encharcamento provenha de uma teimosa goteira no sopé de um telhado, é preciso que um dos cidadãos (um único) tenha a iniciativa de abrir o guarda-chuva para que todos os outros lhe imitem o ajuizado gesto.
Por vezes, as evidências pesam-nos sobre os ombros como as palavras para Victor de Matos e Sá: como inexplicáveis dias de chuva. Daí que em países solarengos, espectadores mais atentos da falibilidade das zonas de maior pluviosidade, os governos das maiorias fracassem de modo mais sistemático. E é por isso também, para manter a crença na boa índole das democracias, que me recuso terminantemente a usar guarda-chuva.
9 Comments:
Prova da distinção que tão bem te caracteriza! GRANDE, GRANDE post, proféssor fu**ing doctor!
Também me recuso a usar.
E no futebol, nos velhos estádios, os gritos de "já não chove!", para o pessoal fechar os guardas-chuvas?...
domingo no mundo:
parabéns. mais um, a guardar.
Este comentário foi removido pelo autor.
Dá um gozo enorme poder ler algo assim.
Perfeito na palavra, criteriosamente seleccionada, e de uma lucidez e acutilância invulgares.
eu já sou do tempo em que nos velhos estádios se gritava "já não chove" para o palerma da frente se sentar, pq os chuva-guardas já eram proíbidos.
quanto ao post: é o chamado "cidadão pónhónhó"...
O problema é quando todos querem que alguém lhes diga quando abrir o guarda-chuva.
Fantástica ligação entre temas nem sempre conexionados!
Interessante reflexão. De grande profundida e muito bem escrita como sempre, aliás!).
Tomei a resolução de deixar de usar guarda-chuva!
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