Já tenho óculos...
Sem óculos, as deformidades congénitas deste mundo, que Leibniz classificou como “o melhor dos mundos possíveis”, tendem a apagar-se, a esbater-se, tonificando-o com um polimento maior – para lá das suas imperfeições. Mas a este engano de alma ledo e cego, como vaticinou o poeta, a fortuna não deixa durar muito, e, vai daí, há que comprar uns óculos, para que o chão rugoso da realidade nos ressurja sob o manto da mais míope das fantasias.
Arrojamo-nos então pelas imperfeições do mundo na aquisição de novas próteses oculares, recorrendo a essa espécie de visionário pós-moderno a que vulgarmente chamamos "oculista". E, como é de esperar, a funcionária de um oculista é sempre um modelo de acuidade e clareza, como também se espera que um advogado seja o modelo do cidadão cumpridor ou o médico a imagem das mais saudáveis vivências. Por isto mesmo, coube-me em sorte uma tão visionária criatura, que nenhum anel de Giges poderia ocultar-me, furtando-me ao seu modelar campo de visão. E assim me sujeitei ao seu criterioso desvelo para com as minhas próteses, para o modo como encaixavam nas protuberâncias da minha fronte e nas escarpas insondadas do meu tão estimável rosto. E foi nesta ocasião, quando a menina me olhava no fundo dos olhos e quando já eu me preparava para, sob os auspícios de Hegel, experienciar a noite do mundo, que me achei num face a face com a minha própria condição: vi, como nunca antes tinha visto, o meu resvalar trintão nos caminhos da existência.
Os trinta são uma idade limite, em que a aproximação juvenil democraticamente garantida no tratamento por “tu” já não é dado adquirido. Lá nos aparece, na assombração do quotidiano, a dúvida de um “tu” eternamente jovem ou de um “o senhor” excessivamente venerando. Atenta e acurada, a empregada da óptica optou por um tratamento misto. Exemplifiquemos:
-“Queres uma bolsinha para os óculos; temos uma oferta que lhe agradará com toda a certeza!”
-“O que fazes logo à noite? Se for do teu agrado, garantiremos um pontual mas gratificante tratamento a esse seu pujante corpinho…”
Há então, entre mim e um par de óculos, um resvalar para o mundo dos “senhores” em que o “tu” é abolido. Entrementes, é preciso que uma funcionária de uma óptica me desembrulhe o mundo baço em que, no vidro fosco de uma realidade em progresso, com um pé ainda no “tu” e com o outro a progredir para “si”, espera-se desesperadamente por um nós que nos circunde, sem óculos ou próteses, para que o mundo novamente nos engane numa ilusória perfeição…
- Deixa lá os óculos, então… Esqueça-se. Desenquadre-se de uma realidade em que não te reconheces. Pode ser que um dia – quem sabe? – o “tu” lhe apareça numa permissiva e plena eternidade em que possas, enfim, libertar-te desse tão coloquial tratamento que a sua – ou a tua? – idade já exige… Que achas? Que lhe parece?
Os trinta são uma idade limite, em que a aproximação juvenil democraticamente garantida no tratamento por “tu” já não é dado adquirido. Lá nos aparece, na assombração do quotidiano, a dúvida de um “tu” eternamente jovem ou de um “o senhor” excessivamente venerando. Atenta e acurada, a empregada da óptica optou por um tratamento misto. Exemplifiquemos:
-“Queres uma bolsinha para os óculos; temos uma oferta que lhe agradará com toda a certeza!”
-“O que fazes logo à noite? Se for do teu agrado, garantiremos um pontual mas gratificante tratamento a esse seu pujante corpinho…”
Há então, entre mim e um par de óculos, um resvalar para o mundo dos “senhores” em que o “tu” é abolido. Entrementes, é preciso que uma funcionária de uma óptica me desembrulhe o mundo baço em que, no vidro fosco de uma realidade em progresso, com um pé ainda no “tu” e com o outro a progredir para “si”, espera-se desesperadamente por um nós que nos circunde, sem óculos ou próteses, para que o mundo novamente nos engane numa ilusória perfeição…
- Deixa lá os óculos, então… Esqueça-se. Desenquadre-se de uma realidade em que não te reconheces. Pode ser que um dia – quem sabe? – o “tu” lhe apareça numa permissiva e plena eternidade em que possas, enfim, libertar-te desse tão coloquial tratamento que a sua – ou a tua? – idade já exige… Que achas? Que lhe parece?
(Foto de Chema Madoz, claro!)
4 Comments:
já pensaste fazer uma operação cirúrgica com laser a esse mal de olhar? sempre evitavas que uma mera funcionária de oculista te pusesse a matutar na idade...
ter 30 anos, ter trinta e alguns anos, é muito bom...
tomara eu,quando entrar nos enta, ter a mesma convicção.
gostei de te ler, claro!
ehehe!
sabes, meu caro, uma vez o meu irmão veio comigo a CBR pq eu estava com o pé engessado. e fomos almoçar a um rest perto da minha casa da altura onde todos os empregados eram uns trintões de bigode.
e eu "traz-me uma cola, sff"
e o meu mano perguntou-me "tratas estes gajos de bigode todos por tu??"
"claro, se eles também me tratam a mim!!"
;o)
Que tal experimentar as lentes de contacto?
Acho que comecei a ter de andar com óculos aos 11...só que não andava porque achava que me ficavam mal, logo não via ninguém :)até que comecei a usar lentes :)
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