quinta-feira, junho 29, 2006

Interacções 1: A lei da bala

Um antigo professor contava-me uma traquinice do filho. Com os seus 4 ou 5 viçosos anos, o menino resistia a uma imposição paterna: - "Tens que comer a sopa!”

Mas filho de filósofo não sucumbe a intentos alheios sem questionar ou transgredir: porque haveria ele de comer a sopa? Porque teria que gostar de sopa? Qual o lugar da sopa no encadeamento lógico das coisas ou nas tábuas valorativas da moral ocidental?... Não. Ele não comeria tal mixórdia. E como o discurso se deixa limitar pelo seu firme e intransigente fundamento, ele apenas lança frios e sistemáticos nãos à colher maldita: – Não! Simplesmente, não!

Mas um pai, por vezes, até se dá ao luxo de não abdicar facilmente dos seus paternos desígnios, e, quando tal acontece, engrossa artificialmente a voz, crescente em dó de peito sobre o flagelado rebento. Neste caso, o bater da colher na mesa, com a autoridade trovejante de Zeus, não admitia réplicas à imposição da lei da sopa ao filho recalcitrante. Mas o menino enfrenta-o e, num gesto decidido, levanta-se da mesa anunciando com voz de ameaça justiceira:

- Pois se é assim, vou telefonar para o SOS Criança!

O dito infantil encerra, por vezes, acusações que trazem toda uma época como papel de embrulho. É que o que aqui aconteceu não foi senão uma alegoria para uma certa forma de conceber as leis – das pessoas e da sua retorcida relação com as leis, como se estas lhes substituíssem a espontaneidade do gesto, como se não fossem senão uma prescrição singular e mecânica para uso e abuso dos muitos polícias que por aí grassam e pululam. A criança em questão exorbitou a noção de maus-tratos, entendendo por isso ser legítimo recorrer a uma instituição que a acautelaria, legislando punitivamente sobre a sopa agressiva e a sua ostensiva imposição. Ora o problema surge quando verificamos que hoje facilmente se coloca, no lugar da criança, o cidadão de rectos costumes e hábitos salubres, ao qual os Estados fornecem mecanismos de segregação para operar contra todos os que não cumpram o arrumadinho critério da sã convivência; o mesmo critério cujo cumprimento não convém realmente a nenhum Estado, mas que aparece consignado, dia após dia, em novas leis, debruadas de dourados fundamentalismos.

E assim se vão erigindo proibições – não fumar; não beber; não cuspir para o chão – e galvanizando atitudes que as vigiem e penalizem, esquecendo um princípio relembrado pelo Prof. Figueiredo Dias, ilustre penalista, em recente intervenção pública: Cada um tem o direito de ir para o inferno da maneira que bem entender…

Deserdado de 68, o nosso tempo encontra a lei como domínio invasor, recurso de vigilância e de normalização ou como um ditado de costumes. E cedemos ao muito americanizado hábito de legislar sobre o que é da ordem da educação, do bom senso, da escolha singular, desrespeitando assim, a um tempo, o domínio da liberdade individual e a própria lei que a sustenta, base e fundamento da Democracia.

O tema, que agradeço ao Bartleby, tem pano para mangas demasiadamente compridas, dada a temperatura que aqui faz… Prometo voltar a ele a breve trecho, fora de uma semana que, por escolha individual e não por legislação imposta, é semana interactiva. Continua aberto o concurso para temas de posts… E comam a sopa!

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Grande tema Bartleby!
Grande post Filósofe!

Mas continuo a aguardar o das tascas... ;)

6:46 da tarde  
Blogger feniana said...

eu adoro sopa, ao contrário da mafalda!
mas gosto muito mais dos teus posts.
mais um. bestial.

beijinhos filosóficos

um parabéns ao mentor, bartleby, esse senhor dos livros:)

10:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estou a ver que foi uma bela ideia, essa das interacções :)

9:14 da manhã  
Blogger TR said...

Aristóteles, estou rendida à alegoria e a explicação. Muito Bom! Muito Bem!!!

5:48 da tarde  
Blogger rps said...

Belo post. Como prémio, logo, podes não comer a sopa.

7:20 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Boa posta.
Falta-lhe apenas um plano: a estrutura intencional do fenómeno OU a Má regulática Vs Boa regulação OU O inferno (de costa andrade e figueiredo dias) segundo o «liberalismo» pós-pós-(...) moderno (desconheço a geração actual) OU por que perdemos toda a esperança

9:08 da manhã  
Blogger DomingonoMundo said...

Os afazeres diários perturbaram o bom andamento das Interacções. Prosseguiremos durante a tarde de hoje...

2:13 da tarde  
Blogger redonda said...

Quando eu era criança também era uma guerra para comer a sopa... e acabava por ir mais cedo para a cama sem ver televisão...ah se no meu tempo já existisse o SOS Criança!

1:24 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home


referer referrer referers referrers http_referer