Interacções 1: A lei da bala
Um antigo professor contava-me uma traquinice do filho. Com os seus 4 ou 5 viçosos anos, o menino resistia a uma imposição paterna: - "Tens que comer a sopa!”
Mas filho de filósofo não sucumbe a intentos alheios sem questionar ou transgredir: porque haveria ele de comer a sopa? Porque teria que gostar de sopa? Qual o lugar da sopa no encadeamento lógico das coisas ou nas tábuas valorativas da moral ocidental?... Não. Ele não comeria tal mixórdia. E como o discurso se deixa limitar pelo seu firme e intransigente fundamento, ele apenas lança frios e sistemáticos nãos à colher maldita: – Não! Simplesmente, não!
Mas um pai, por vezes, até se dá ao luxo de não abdicar facilmente dos seus paternos desígnios, e, quando tal acontece, engrossa artificialmente a voz, crescente em dó de peito sobre o flagelado rebento. Neste caso, o bater da colher na mesa, com a autoridade trovejante de Zeus, não admitia réplicas à imposição da lei da sopa ao filho recalcitrante. Mas o menino enfrenta-o e, num gesto decidido, levanta-se da mesa anunciando com voz de ameaça justiceira:
- Pois se é assim, vou telefonar para o SOS Criança!
O dito infantil encerra, por vezes, acusações que trazem toda uma época como papel de embrulho. É que o que aqui aconteceu não foi senão uma alegoria para uma certa forma de conceber as leis – das pessoas e da sua retorcida relação com as leis, como se estas lhes substituíssem a espontaneidade do gesto, como se não fossem senão uma prescrição singular e mecânica para uso e abuso dos muitos polícias que por aí grassam e pululam. A criança em questão exorbitou a noção de maus-tratos, entendendo por isso ser legítimo recorrer a uma instituição que a acautelaria, legislando punitivamente sobre a sopa agressiva e a sua ostensiva imposição. Ora o problema surge quando verificamos que hoje facilmente se coloca, no lugar da criança, o cidadão de rectos costumes e hábitos salubres, ao qual os Estados fornecem mecanismos de segregação para operar contra todos os que não cumpram o arrumadinho critério da sã convivência; o mesmo critério cujo cumprimento não convém realmente a nenhum Estado, mas que aparece consignado, dia após dia, em novas leis, debruadas de dourados fundamentalismos.
E assim se vão erigindo proibições – não fumar; não beber; não cuspir para o chão – e galvanizando atitudes que as vigiem e penalizem, esquecendo um princípio relembrado pelo Prof. Figueiredo Dias, ilustre penalista, em recente intervenção pública: Cada um tem o direito de ir para o inferno da maneira que bem entender…
Deserdado de 68, o nosso tempo encontra a lei como domínio invasor, recurso de vigilância e de normalização ou como um ditado de costumes. E cedemos ao muito americanizado hábito de legislar sobre o que é da ordem da educação, do bom senso, da escolha singular, desrespeitando assim, a um tempo, o domínio da liberdade individual e a própria lei que a sustenta, base e fundamento da Democracia.
O tema, que agradeço ao Bartleby, tem pano para mangas demasiadamente compridas, dada a temperatura que aqui faz… Prometo voltar a ele a breve trecho, fora de uma semana que, por escolha individual e não por legislação imposta, é semana interactiva. Continua aberto o concurso para temas de posts… E comam a sopa!
Mas filho de filósofo não sucumbe a intentos alheios sem questionar ou transgredir: porque haveria ele de comer a sopa? Porque teria que gostar de sopa? Qual o lugar da sopa no encadeamento lógico das coisas ou nas tábuas valorativas da moral ocidental?... Não. Ele não comeria tal mixórdia. E como o discurso se deixa limitar pelo seu firme e intransigente fundamento, ele apenas lança frios e sistemáticos nãos à colher maldita: – Não! Simplesmente, não!
Mas um pai, por vezes, até se dá ao luxo de não abdicar facilmente dos seus paternos desígnios, e, quando tal acontece, engrossa artificialmente a voz, crescente em dó de peito sobre o flagelado rebento. Neste caso, o bater da colher na mesa, com a autoridade trovejante de Zeus, não admitia réplicas à imposição da lei da sopa ao filho recalcitrante. Mas o menino enfrenta-o e, num gesto decidido, levanta-se da mesa anunciando com voz de ameaça justiceira:
- Pois se é assim, vou telefonar para o SOS Criança!
O dito infantil encerra, por vezes, acusações que trazem toda uma época como papel de embrulho. É que o que aqui aconteceu não foi senão uma alegoria para uma certa forma de conceber as leis – das pessoas e da sua retorcida relação com as leis, como se estas lhes substituíssem a espontaneidade do gesto, como se não fossem senão uma prescrição singular e mecânica para uso e abuso dos muitos polícias que por aí grassam e pululam. A criança em questão exorbitou a noção de maus-tratos, entendendo por isso ser legítimo recorrer a uma instituição que a acautelaria, legislando punitivamente sobre a sopa agressiva e a sua ostensiva imposição. Ora o problema surge quando verificamos que hoje facilmente se coloca, no lugar da criança, o cidadão de rectos costumes e hábitos salubres, ao qual os Estados fornecem mecanismos de segregação para operar contra todos os que não cumpram o arrumadinho critério da sã convivência; o mesmo critério cujo cumprimento não convém realmente a nenhum Estado, mas que aparece consignado, dia após dia, em novas leis, debruadas de dourados fundamentalismos.
E assim se vão erigindo proibições – não fumar; não beber; não cuspir para o chão – e galvanizando atitudes que as vigiem e penalizem, esquecendo um princípio relembrado pelo Prof. Figueiredo Dias, ilustre penalista, em recente intervenção pública: Cada um tem o direito de ir para o inferno da maneira que bem entender…
Deserdado de 68, o nosso tempo encontra a lei como domínio invasor, recurso de vigilância e de normalização ou como um ditado de costumes. E cedemos ao muito americanizado hábito de legislar sobre o que é da ordem da educação, do bom senso, da escolha singular, desrespeitando assim, a um tempo, o domínio da liberdade individual e a própria lei que a sustenta, base e fundamento da Democracia.
O tema, que agradeço ao Bartleby, tem pano para mangas demasiadamente compridas, dada a temperatura que aqui faz… Prometo voltar a ele a breve trecho, fora de uma semana que, por escolha individual e não por legislação imposta, é semana interactiva. Continua aberto o concurso para temas de posts… E comam a sopa!
8 Comments:
Grande tema Bartleby!
Grande post Filósofe!
Mas continuo a aguardar o das tascas... ;)
eu adoro sopa, ao contrário da mafalda!
mas gosto muito mais dos teus posts.
mais um. bestial.
beijinhos filosóficos
um parabéns ao mentor, bartleby, esse senhor dos livros:)
Estou a ver que foi uma bela ideia, essa das interacções :)
Aristóteles, estou rendida à alegoria e a explicação. Muito Bom! Muito Bem!!!
Belo post. Como prémio, logo, podes não comer a sopa.
Boa posta.
Falta-lhe apenas um plano: a estrutura intencional do fenómeno OU a Má regulática Vs Boa regulação OU O inferno (de costa andrade e figueiredo dias) segundo o «liberalismo» pós-pós-(...) moderno (desconheço a geração actual) OU por que perdemos toda a esperança
Os afazeres diários perturbaram o bom andamento das Interacções. Prosseguiremos durante a tarde de hoje...
Quando eu era criança também era uma guerra para comer a sopa... e acabava por ir mais cedo para a cama sem ver televisão...ah se no meu tempo já existisse o SOS Criança!
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