segunda-feira, setembro 04, 2006

Estou sem óculos!!!

Uma prótese é mais do que uma simples extensão; é também um adereço, uma forma desarrumada de lidarmos com as imperfeições do mundo, como se disséssemos, como poeta romântico desavindo com o criador inepto: - "Já que me fizeste assim, toma lá, eis-me de prótese!" Assim um par de óculos, ou um mais pontual par de muletas, um ameaçador aparelho de dentes ou um discreto aparelho auditivo evitando os ãhs que nos nasalam os ditos… Acima de tudo, uma prótese é uma marca da nossa mais sublime humanidade, teimosamente corrigindo a Natureza dos seus caprichos, inestetismos ou matreiros acidentes.

Mas é também – ó miséria humana! - um manancial de hábitos e de afectos, tão caprichosos que nos levam a estimar o que tão constantemente nos fustiga. Pois é! Estamos deitados nos hábitos; estamos ciosos de enxertos! Somos, nós próprios, próteses, e delas sentimos saudades como se fossem partes de nós mesmos! Herdeiros de Proteu, somos construtores demiurgos; próteses somos e nelas nos sustemos.

Neste pequeno excerto confessional, elejo como alvo das minhas lamúrias uma prótese que, de há um tempo para cá, se tem fincado no chão da minha pequena realidade como eixo artificioso de todo um universo. E choro, e suspiro, e recordo os dias em que tal prótese se infiltrou no meu sossego como carne da minha carne – os meus óculos.

Já Chico Buarque cantou a saudade como dor latejada – “é assim como uma fisgada num membro que já perdi” – e são os acordes dessa mesma música que envolvem as lágrimas dos meus olhos despidos, sem óculos – sem prótese, dEUS meu! – aos quais a minha mão procura, num aconchego fantasma à extremidade das minhas orelhas. E busco o arranhão das suas hastes, e o teimoso embaciar das suas lentes, e a flanela que não serve para mais do que enxugar lágrimas e recolher pestanas.

Já aqui citei uma das mais insólitas afirmações de Wittgenstein: as ideias assentam sobre o nosso nariz, como um par de óculos. Pois bem, recuso-me a ter ideias sem a minha prótese, essa, que tanto me torturou e que tanto socorreu a minha pele, excessivamente imaculada na sua placidez sem aros. Declaro então aqui as saudades dos meus óculos, reclamando ao meu rosto sem marcas o declínio sorridente a que subitamente se votou. Quero os meus óculos!!! Alguém os viu?

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Depois de mastigar o assunto, fiquei na dúvida. Não terá, antes, sido: as ideias assentam sob o nosso nariz?

12:52 da manhã  
Blogger rps said...

O regresso à grande forma?...

5:03 da tarde  
Blogger António Conceição said...

Eu não!
Mas já agora, se alguém os vir e não forem os do Aristóteles, entre em contacto comigo. É que eu também perdi os meus.

Quanto à dúvida do Sr. Wittgenstein no primeiro comentário, não a compreendo: então não foi ele que escreveu a frase?
Ele é que sabe se escreveu "sobre" ou "sob".
Em qualquer caso, discordo. Pelo menos no que a mim se refere, as ideias crescem-me dentro do nariz.
Agora uma coisa que eu gostava muito que o senhor wittgenstein me ensinasse é como é que se escreve a bold nos comentários.

6:20 da tarde  
Blogger Fabiana said...

Ainda sem óculos?

3:52 da tarde  

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