Interacções 2: Rua N. Sra de Fátima, finais dos anos 70.
Imaginemos então que, na esquina de uma rua de determinada cidade, encontramos um indivíduo severo, que traz a História às cavalitas. Reconhecendo vagamente o personagem, saímos da vacuidade do cumprimento en passant e entabulamos conversa, trazendo à coacção a pequena menina que tão estoicamente transporta. “Sim – queixa-se o indivíduo, secundado por uma negaça da História – é platónico desígnio esse o de buscar as asas da alma, mas as crianças, como tão seriamente sabemos, não têm quereres ou influência… Veja-se esta que aqui trago…” – prossegue, apontando para a História – … "não é que, em finais de 70, decidiu regredir a um estádio infantil e indeterminado?! Lembro-me que, quando morava na Rua N. Sra. De Fátima (achei, por esta altura da conversa, que ele queria apenas um pretexto de narrativa, que consenti displicentemente), não fazia senão andar para a frente e para trás numa mota de plástico. Esta brincalhona que aqui está ia comer doces à confeitaria Chaimite (ou à Peninsular, sua concorrente e vizinha), sem cuidar do desvio desse nome, de carro de combate colonialista a instrumento libertador do 25 de Abril. Diga-me lá o meu caro amigo se esta não é uma gravosa regressão… E contagiosa! Estende-se à confeitaria do lado, a Peninsular, com a queda do Franco e a extensão da infância, que segue de mota de plástico para o país vizinho fazendo da infantilidade uma regressão peninsular!”
“É que – prossegue ele – como o meu amigo sabe – e põe um ar de elevação erudita – infância é, etimologicamente, o que é sem verbo, sem discurso, sem Logos; esta menina, de vez em quando, decide ser criança outra vez, perdendo os instrumentos rígidos do dizer e deixando as pessoas a patinar na própria fala.” E ilustra:
-“Lembra-se daquele vizinho que insistia em tratar esta rua por Vossa Senhora de Fátima? É ou não exemplo do tempo desencontrando a linguagem?! Ah, este diabrete! A culpa é toda dela! Na altura, passava ali pelo São Miguel, comprava chocolates de fiado ao Sr. Neves e fazia caretas aos puxões de bochechas da Mimosa, espalhando o existir silencioso e infantil de quem ainda não sabe quem é. Deixava-se conduzir pelo Ernesto talhante, ou pelo gasolineiro (que sempre fingia atestar-lhe o depósito da mota de plástico), e era vê-la cirandar nesse silêncio de asas, que dava azo a que as pessoas pensassem que todos a podiam conduzir e que qualquer um tinha verbo a dizer nessa doce informulação de uma História ainda criança!...”
“É que – prossegue ele – como o meu amigo sabe – e põe um ar de elevação erudita – infância é, etimologicamente, o que é sem verbo, sem discurso, sem Logos; esta menina, de vez em quando, decide ser criança outra vez, perdendo os instrumentos rígidos do dizer e deixando as pessoas a patinar na própria fala.” E ilustra:
-“Lembra-se daquele vizinho que insistia em tratar esta rua por Vossa Senhora de Fátima? É ou não exemplo do tempo desencontrando a linguagem?! Ah, este diabrete! A culpa é toda dela! Na altura, passava ali pelo São Miguel, comprava chocolates de fiado ao Sr. Neves e fazia caretas aos puxões de bochechas da Mimosa, espalhando o existir silencioso e infantil de quem ainda não sabe quem é. Deixava-se conduzir pelo Ernesto talhante, ou pelo gasolineiro (que sempre fingia atestar-lhe o depósito da mota de plástico), e era vê-la cirandar nesse silêncio de asas, que dava azo a que as pessoas pensassem que todos a podiam conduzir e que qualquer um tinha verbo a dizer nessa doce informulação de uma História ainda criança!...”
E remata, incisivo:
"Mas, felizmente, os anos 70 acabaram e esta traquinas cresceu. Agora o S. Miguel é um Banco e a Mimosa não existe. Mas há sempre que vigiar esta malandra! Volta e meia, decide regredir ao estado infantil, gastando o tempo a ver os comboios na Avenida da França, impelida pelo pulso sonhador do seu avô, ou ancestrais perigosamente quiméricos… Por isso aqui a trago às cavalitas. Devolvo-a assim ao seu estado deveniente e brutal, de palavra e de maturidade, fazendo-a entender que a infância é apenas uma artéria no todo esmagador da cidade, a tender para um lugar central onde floresce a Razão; tal como a pequena Rua N. Sra. de Fátima flui, timidamente, para a nevrálgica e populosa rotunda da Boavista."
E dito isto, retomamos a marcha.
(Para o amigo RPS)
E dito isto, retomamos a marcha.
(Para o amigo RPS)
9 Comments:
Obrigado. Sabia que dava uma bela posta!
Já não há putos a rolar de moto de plástico por lá. Deve ter sido por isso que a gasolineira fechou...
A gasolineira perdeu a sua melhor clientela... e a história já não é o que era, como aliás nunca foi.... Eu nuca vivi nesta rua, e pouco sei dela, mas tenho alguma ligação afectiva e familiar a ela. :-))
ah! esse gasolineiro a fingir encher o depósito da mota de plástico... :)
quase pude, de tão real, tirar duas de conversa com ele e dizer-lhe que sim, que pelo gesto, me entrou no coração... e que também eu, um dia destes, nos anos 70, lá passo para atestar o depósito da minha vespa!
mas que bem, senhor filósofo, que bem esgalhado este mote que o rps te deu.
beijinhos filosóficos para ti
e beijinhos radiofónicos (só há dia me dei conta) para ele :) ;)
Isto não avança? Muito trabalho? :-)
stor veja os seus emails!!!
É verdade, TR... A minha semana interactiva tem sofrido com "interrupções". Talvez hoje à tarde isto se actualize!
P., é melhor escreveres para o endereço do meu perfil. Consulto-o mais vezes!
Ainda há vida...??
este blog está muito interrupto...
Sejamos precisos: está parado!
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