quarta-feira, outubro 18, 2006

O simples homem e a complexa mulher

Há uma altura em que a mulher, em demoníaco engendramento de si mesma, enceta o diálogo que a reconstruirá aos olhos da História, fora dos estreitos corredores da verdade de onde continuamente a arredaram. Neste contexto, a artista plástica Colette Deblé avança, nos anos 80, com o conceito de ladyablogues, conjugando inteligentemente as palavras lady, diable e dialogue num trabalho de reinvenção da tradição tendo a mulher como sujeito. Hoje, jogando a minha infantilóide condição masculina na coicidência fonética de ladyablogue com blogue, reaproprio-me deste termo compósito (com a devida vénia, que não se deve usurpar a História do dom do cavalheirismo!) para designar o nicho blogosférico com o qual deparei, e no qual descobri um post que me mereceu particular atenção.

O texto faz-me saber a razão pela qual as mulheres são “complicadas”, por oposição ao modo simplificado como o homem vai lidando com o que o rodeia, recorrendo a modelos de pensamento que explicam essa dissociação fundamental. Descubro então que a mulher é um ser conotativo, metafórico, compreensivo, tendo o homem, por antonomásia, o dom da objectividade, o hábito explicativo que toma com cré e que faz dizer a bota com a perdigota.

De cada vez que alguém cai na cela da definição (seja um género, uma raça, um credo ou simplesmente uma pessoa), elevam-se justas vozes a salvaguardar singularidades, a contrariar tendências, a desajustar os parafusos teóricos em que assentam as portadas da tese em discussão. Hoje, queria juntar o meu braço masculino a esta mesma manobra de utilitário bricolage.

Sem querer feminilizar excessivamente o assunto, poderia dizer que pensar não é meramente uma função, uma operação ou um movimento de coincidência com uma realidade prévia; é antes uma morada, uma errância de onde o excesso que nos atravessa flui em catadupa, em implosão e explosão, em tragédia e em catarse, fluxo excessivo e desabrigado onde continuamente chocamos com o nó emaranhado da nossa condição conjunta. E é por isso que, provavelmente (sendo mais masculino, desta vez), diria ser bastante provável que o tal homem, delimitador e objectivo, se revele afinal (em situação ou no mais íntimo de si mesmo), um ser complexo e prolixo, enquanto a mulher, o mesmo ser culturalmente investido de metáfora e fantasia, uma fria e objectivadora funcionária de Descartes.

Discutamo-nos, então, mas sem a tal prancha definidora de matriz positivista, e com atenção aos sensos e contra-sensos em que nos querem encerrar. Pergunte-se, por exemplo, se uma concepção de pensamento (mais do que uma tendência de comportamento) se basta na velha dualidade objectivo/subjectivo, se esta tipificação é útil ou, ao contrário, se não perpetua o reino dos preconceitos culturalmente induzidos, ocultando necessariamente as situações que interpelam o pensar ou que o próprio pensamento produz.

É que é necessário pensar o pensamento para além da sua pura e simples função, e mais como morada exclusivamente humana, com dobras, derivas e tangentes perante as quais as velhas categorias do objectivo e do subjectivo, do simples e do complexo, se tornam tão precárias e insuficientes como o espaço que a construção histórico-cultural reservou (e reserva ainda) à mulher. Mas é aqui também (com a devida vénia) que nos devemos deixar enredar nos meandros de um ladyablogue, para que do ritmo sempre imensurável do diálogo sobeje a necessidade da atenção, da escuta, do ímpeto criativo e fundador presente em todos os espíritos transgressivos que levam na enxurrada as velhas definições. Sejam elas homens, sejam eles mulheres.

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Antes de mais, agradeço a referência (e o comentário no “cusquices”).

Em relação ao post: pactuo, em traços gerais com o que aí é dito. Sem que isso denuncie qualquer contra-senso.

Concordo, também: não nos deixemos cair em definições positivistas! Mas saibamos porquê fazê-lo. Nada como a discussão da realidade, ou apenas de uma visão dessa existência como são todas as teorias, para atentarmos a essa mesma realidade. A consciencialização é o primeiro paço para a mudança. E por mais redutoras e positivistas que possam ter sido algumas teorias, a verdade é que constituíram sempre uma catapulta para teorias mais elaboradas e mais próximas da realidade.

Peguemos, a título de exemplo, nas teorias comportamentalistas da aprendizagem. Estão desactualizadas; são redutoras e bastante carentes. No entanto, as teorias que hoje se seguem nesse âmbito, estão mais próximas da realidade por terem conseguido colmatar falhas das primeiras explicações da aprendizagem. Tiramos valor ao comportamentalismo? A minha resposta é segura: não.

Talvez possa ser o caso desta teoria.

Espero ter sido clara. Já objectiva, não o peçamos!

11:47 da tarde  
Blogger DomingonoMundo said...

Obrigado também, Cuscavel. Porém, penso que a voz mais corrente é justamente essa, que a abordagem dualista (simples/complexa; objectivo/subjectiva)acaba por fortalecer. E é isso que eu acho que é necessário ultrapassar. De resto, parabéns pelo blogue, pela oportunidade de debate e pelo post...

12:16 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Eu escrevi mesmo paço?!

12:40 da manhã  
Blogger Unknown said...

Não tirava uma palavra.

1:19 da tarde  
Blogger Unknown said...

Melhor, nenhuma.

1:22 da tarde  
Blogger rtp said...

Gostei muito de ver, neste post, a desconstrução da "cela da definição", onde o particular se dissolve sempre no geral. Sabe(-me) muito bem ler estes pedaços de pensamento sobre o pensamento.

1:51 da tarde  
Blogger feniana said...

estava com saudades de te ler assim, domingo!

4:18 da tarde  

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