quinta-feira, março 08, 2007

Para um não acomodado Bom Dia!

…“E és tu ainda estarmos sós com bairros de sonho
e tão breve se gastar o Dia que há em teu rosto”
(Victor de Matos e Sá)

Dizem que o dia de hoje tem rosto de mulher, como se os dias todos não o tivessem ou o ocultassem (ou o velassem). Entre o dia e o rosto há uma relação íntima, cadenciada num certo refulgir de olhos, numa manhosa languidez de fartas pestanas, que parecem sorver o dia todo na manhã clara da sua cintilação. Bom-dia, pois, que o dia renova-se na decifração da face que almeja “bairros de sonho”, desejando compensar todos os dias com a suprema vocação da leitura do dia. Um só, dele se abrindo o leque de todos os restantes.

Este dia, porém, quem o habita? Que sonho o ocupa? Que pálpebras se fecham para melhor o verem, no seu claro e apartado vislumbre – e que mulher sonha acordada à brevidade da sua passagem?


Quando repetimos o lema “dia da mulher”, parece-nos então que algo se desadequa, como se não coubesse o singular concreto nessa espécie de categoria universal: A mulher – Que mulher? Como a enunciar sem desrespeitar todas as mulheres? E como querer afirmar um dia de “todas as mulheres” sem faltar à definição universal da mulher, na sua diferença constitutiva? De mim, a ti, a ela – quem é realmente a mulher?

Lévinas ensinou-o. Há uma “ela” irredutível à relação eu-tu; uma alteridade onde plana, a distância inalcançável, essa altitude, de tal maneira que “ao fundo do tu” há uma “ela” que não se absorve em famílias, teoremas ou conceitos sobre a mulher, sobre as mulheres, sobre toda e qualquer mulher. Resta-nos esperar que seja “ela”, “ao fundo do tu”, a veladora desses “bairros de sonho” aos quais hoje damos os bons dias…

Sim, bairros de sonho. Porque sempre soubemos que o sonho é habitação precária, uma espécie de gueto ou enclave, um género de acampamento breve cortado cerce nos arredores do possível. E como sabemos, sabes também, porque é de ti que se trata quando falamos do dia da mulher: do teu quotidiano despertar para as coisas justas, do modo autónomo como vais ousando “sonhar a tua caravela” (Derrida) ou dessa tua ciência de ser maré viva, contra-corrente, areia fina na doce decantação do que há de mais impuro na secular dominação masculina. Para além de ti, sabes agora que há uma “ela” resistente, sobrevivente, recalcitrante – bom-dia a “ela”! Bom-dia a ti!

Deixa então que esse “tu” seja o pronome auroral do dia sempre breve da tua imposição. Cabe-nos enfunar as velas dessa tua ânsia de justiça; e forjar o teu descanso, alimentando a felicidade desse teu acontecer tão próprio, tão intransigentemente autónomo. E quando a madrugada vier extinguir o dia sob as tuas pálpebras cansadas, dar largas ao teu sonho, ao teu verbo, às irrepetíveis fulgurações de ti a quem agora, em vigília pelo dia fora, dou uma e outra vez um sereno e acolhedor bom-dia. Um bom dia, pois… Não da mulher, mas de todas as mulheres que circulam em ti. Quando tu és unicamente tu, no mesmo gesto em que és todas as mulheres do mundo…

…”Tu, demasiado tu

Para não seres a única possível

Imagem: Helena Almeida, Tela Habitada (1976)

4 Comments:

Blogger rtp said...

Muito belo! Extraordinário! Gostei muito. Mesmo!
E eu que rejeito os "dias de" com que somos bombardeados, agradeço que este exista só por me ter dado o prazer de ler este post!
Belas palavras para rejeitar a ideia de dissolver no universal abstracto o precioso concreto individualizador!

9:37 da tarde  
Blogger Daniela Lot said...

Finalmente um texto inteligente no meio de tanta bobagem :)

1:30 da tarde  
Blogger rps said...

... mas, Daniela, tem vezes que seu Aristótles bem que bobeia!...

10:06 da tarde  
Blogger Daniela Lot said...

hehe...viva a contradição!

12:39 da manhã  

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