sexta-feira, outubro 17, 2008

Simone de Beauvoir, em ano de centenário*


O ditado, como acusou Blanchot, é uma ordem sem réplica. O ditado dita o que é, sem possibilidade de devir, de recuar ou de derivar. Se voltamos costas ao ditado, afirmando o terreno movente da deveniência, podemos estar tentados a dizer: Não somos, mas fazemo-nos. O perigo começa aqui, quando uma certa sedução de errância passa a dizer-nos aquilo que não somos nem temos que ser, e que provavelmente somos mais quando desobedecemos, quando derivamos, quando nos entregamos à sempre perigosa tentação de nos construirmos; quando nos perdemos desse ditado –ordem sem réplica–, e passamos a ser uma linha solta no coração do poema, ou liberdade na liberdade, ou soberana alegria da afirmação.

Quando Simone de Beauvoir escolheu encontrar em si mesma o gesto da sua definição, foi como se uma noite eterna lhe pesasse no pescoço, ferida pela seta dos tempos em que se classificava, em que se ordenava e normalizava – razão do tempo que era preciso fazer sair da razoabilidade. Por isso, mais do que uma definição, concedeu-nos um gesto que entra pela história dentro, para afirmar a contingência de todas as definições. Também por isso, não há chavão mais justamente replicado do que esse: “on ne naît pas femme: on le devient”.

Gostaria de saber que critérios de Edição ou de Tradução seriam adoptados, se tivesse vingado aquele que foi o título inicial de O Segundo Sexo: L`Autre. Suprema ironia se tivéssemos entre mãos O Outro; curiosa adulteração se lhe chamássemos A Outra. De qualquer modo, tornava-se mais evidente a dimensão política da indústria da edição, assim forçada a declarar e justificar, no título, uma orientação hermenêutica assumida desde o frontispício de um dos livros mais repudiados pelos seus contemporâneos e mais celebrados pelas suas herdeiras.

Nesse Segundo Sexo, François Mauriac encontrou um apogeu de “abjecção”, enquanto o Le Figaro denegria a autora (e há insultos de prestígio!) chamando-lhe “a bacante”. Choveram críticas – quase tantas como as que recaíram e ainda hoje recaem sobre esse eterno enfant terrible chamado Jean-Paul Sartre – do centro, à direita, passando por uma larga camada da esquerda, o que só para os distraídos é injustificado.

É que a esquerda (hélas!) também se institui; às vezes não se faz… porque é. Falemos então do que fazemos de nós, Simone, na incerta imensidão de uma folha em branco, onde a mudez das essências reclama a voz inúmera. E hoje, como ontem, devimos qualquer coisa – mulher, homem, negro, mestre ou subalterno –, como chama que permanentemente adia o cristal da definição.

[* Um dia depois de Serralves ter visitado Judith Butler]

3 Comments:

Blogger cuscavel said...

Beauvoir E Butler. Ousadia! É que misturá-las num mesmo post é arriscado. Se Butler, como muitas outras feministas, reconhece a importância de Beauvoir para o pensamento e movimento feminista, não deixa de a criticar na forma acabada como diz que as "mulheres se tornam"; cuja implicação se resume à visão do corpo como tábua rasa onde se inscreve a cultura (tão influente no feminismo de "segunda vaga"). O que Butler diz (e disse-o ontem) é que não se "atinge" a categoria de, como se antes tivessmos sido outra coisa; ou que o corpo existe fora de uma construção social. As categorias são flutuantes, múltiplas, mutáveis. E o que se entende por "não cultural" ("não nascemos") é já socialmente enquadrado.

7:09 da tarde  
Blogger DomingonoMundo said...

Obrigado pela achega, Cuscavel. Dá-me oportunidade de confessar que este é um post absolutamente infiel a S.B. E essa infidelidade está desde logo aqui: a ideia de "deveniência" não é de todo beauvoiriana, mas só o que uma reescrita (arriscada, como dizes), pode acrescentar-lhe - numa saudação à distância. E sim, no que toca ao pensamento do corpo, "Butler did it", bem mais e melhor do que Beauvoir...

8:04 da tarde  
Blogger Nuno Santos Carneiro said...

O que mais me apeteceu dizer depois da absorção do (bom) post: com blogues assim, podemos reificar que "on ne naît pas lecteur, on le devient". Usado o substantivo masculino que espero não trair Simone(s), sei que o que (em egoísmo) me compele a dizer é que também através daqui me vou fazendo como me posso ir sendo.

3:28 da manhã  

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