O Guarda-Chuva
A realidade é um conjunto de ligações feitas e desfeitas, estabelecidas ou desconectadas, sólidas ou com a leveza delicada de um fio de seda. Esta tese, com história firmada desde Giordano Bruno a Gilles Deleuze, toma como exemplo lapidar o paralelismo entre a casa de habitação e o modesto guarda-chuva… Ambas as realidades centram a sua relevância ôntica num tecto, sendo que o seu fundamento ontológico se encontra em campos opostos e distintas ligações: a casa liga-se por raízes artificiais à terra, enquanto o guarda-chuva tende magneticamente para o céu. Que objecto é este – o guarda-chuva?
A realidade guarda-chuva transporta uma ligação invisível com os espaços celestes, nos seus volúveis humores. O seu tecto de pano – opondo-se à solidez de um telhado, etapa em que a casa coroa a sua ligação terrena em enchapelada importância – liga-se por um fio invisível de chuva às líquidas comportas do céu. E é aqui, nesta sua ligação etérea, que o guarda-chuva revela a sua natureza circunstancial e fugidia, em que os comportamentos se determinam no horizonte das suas ligações. Sigamos umas linhas mais no esclarecimento da natureza do acessório…
Imitar, já dizia o velho Aristóteles, é acto consubstancial ao homem que, esteta por natureza, inventa jardins inodoros nos canteiros guarda-chuvais que são as cidades pluviosas. Vistas de cima, as ruas são campos de malmequeres de lona e de lírios com abertura automática - e verdadeiras flores andantes são os mortais à chuva! Vista de baixo, a panorâmica é pobre e entristecida, não sendo senão um feixe mecânico comandado por uma espécie de pau com um pano por corola. Por isto mesmo, dada a sua natureza volúvel e ligada ao céu, estou em crer que um guarda-chuva deve ser perdido mais vezes do que o Funes perde a carteira, sendo esta convicção o motivo para que um guarda-chuva nunca durasse mais do que 2 horas em minha posse…
Pois bem, hábil em perder guarda-chuvas, sou uma vítima da meteorologia. E como vítima que sou, as pessoas, condoídas, vão interrogando as causas do meu ser encharcado e, alheias às verdades de Tales de Mileto, privilegiam a secura nos caminhos do meu dever-ser: vão-me emprestando guarda-chuvas que nunca terão regresso, feliz acessório de raiz em nuvem que os mortais, transgressores, teimam em ligar ao chão.
Muito tenho justificado a minha insistência em perder guarda-chuvas, sem que consequências de monta chovam na minha integridade física e mental. A excepção acontece agora, quando alguém, cuja identidade não revelo por temer represálias, me emprestou o seguinte guarda-chuva:
A realidade guarda-chuva transporta uma ligação invisível com os espaços celestes, nos seus volúveis humores. O seu tecto de pano – opondo-se à solidez de um telhado, etapa em que a casa coroa a sua ligação terrena em enchapelada importância – liga-se por um fio invisível de chuva às líquidas comportas do céu. E é aqui, nesta sua ligação etérea, que o guarda-chuva revela a sua natureza circunstancial e fugidia, em que os comportamentos se determinam no horizonte das suas ligações. Sigamos umas linhas mais no esclarecimento da natureza do acessório…
Imitar, já dizia o velho Aristóteles, é acto consubstancial ao homem que, esteta por natureza, inventa jardins inodoros nos canteiros guarda-chuvais que são as cidades pluviosas. Vistas de cima, as ruas são campos de malmequeres de lona e de lírios com abertura automática - e verdadeiras flores andantes são os mortais à chuva! Vista de baixo, a panorâmica é pobre e entristecida, não sendo senão um feixe mecânico comandado por uma espécie de pau com um pano por corola. Por isto mesmo, dada a sua natureza volúvel e ligada ao céu, estou em crer que um guarda-chuva deve ser perdido mais vezes do que o Funes perde a carteira, sendo esta convicção o motivo para que um guarda-chuva nunca durasse mais do que 2 horas em minha posse…
Pois bem, hábil em perder guarda-chuvas, sou uma vítima da meteorologia. E como vítima que sou, as pessoas, condoídas, vão interrogando as causas do meu ser encharcado e, alheias às verdades de Tales de Mileto, privilegiam a secura nos caminhos do meu dever-ser: vão-me emprestando guarda-chuvas que nunca terão regresso, feliz acessório de raiz em nuvem que os mortais, transgressores, teimam em ligar ao chão.
Muito tenho justificado a minha insistência em perder guarda-chuvas, sem que consequências de monta chovam na minha integridade física e mental. A excepção acontece agora, quando alguém, cuja identidade não revelo por temer represálias, me emprestou o seguinte guarda-chuva:
Este espécime, não sei por que cargas de água, teima afirmar a sua importância nodal para os caminhos do acontecer e do ser, de tal maneira que o mesmo alguém que mo emprestou chegou ao cúmulo de me ameaçar fisicamente caso o perdesse. Sob opressão, vou mantendo o guarda-chuva e perdendo tudo o resto (liberdade de expressão e pensamento), sabendo que o culpado vive abrigado da sua própria essência, pela via da hostilidade e violência. E ele lá vai subsistindo… vejam o seu ar impune e ajanotado:
O farsante; o drogadito; o pequeno-burguês!...
7 Comments:
Nunca me havia ocorrido adjectivar assim um instrumento que apenas associo a uma utilidade sazonal como é o guarda-chuva ou chapéu-de-chuva, consoante as terras. Escrever é mesmo mostrar o mundo de forma diferente. Parabéns!
Por os perder, não uso. Há muitos, muitos anos. Valem-me o pequeno chapéu impermeável e, claro, a viatura...
Em todo o caso, só andaria com esse guarda-chuva se me pagassem cachet - não faço publicidade de borla.
Comprar livros...desculpas...
Está explicado porque vais ás compras em dias de chuva...deixaste-o em casa não foi? :)
Muito interessante esta sua visão do guarda-chuva.
O meu tem uma designação mais moderna que revela outras utilidades. Foi-me vendido como "anti-vento"! E a verdade é que resiste às ventanias mais fortes. Dobra-se todo, ameaça partir-se, mas retoma sempre a forma inicial.
Depois deste belo post sobre o "guarda-chuva covencional" fico a imaginar o que criaria a propósito de um "anti-vento vanguardista"! :-)
Bom dia!
Os seus textos sao absolutamente deslumbrantes! So aqui se pode navegar na linfa ontologica dos objectos comuns. Deliciosamente!
Também sou daquelas pessoas que perde o guarda-chuva de cada vez que o usa. Para evitar as molhas agora uso um truque portugues: estaciono num local tacitamente proibido, mesmo a porta do departamento... e vou fazendo uns olhinhos...
Bjicos
O meu acabou de ser destruido pelo vento! Fui também uma vítima mas, vá lá, não sofrerei represálias... :)
Quanto a ti, cuida bem do teu farsante, drogadito e pequeno burguês! Não vás um passo além desses insultos, pois o castigo, pelo que descortinei, pode ser aterrador!!!!!!
Pois eu, caro Aristóteles, tive que me casar por causa de um guarda-chuva.
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