domingo, novembro 26, 2006

O Guarda-Chuva

A realidade é um conjunto de ligações feitas e desfeitas, estabelecidas ou desconectadas, sólidas ou com a leveza delicada de um fio de seda. Esta tese, com história firmada desde Giordano Bruno a Gilles Deleuze, toma como exemplo lapidar o paralelismo entre a casa de habitação e o modesto guarda-chuva… Ambas as realidades centram a sua relevância ôntica num tecto, sendo que o seu fundamento ontológico se encontra em campos opostos e distintas ligações: a casa liga-se por raízes artificiais à terra, enquanto o guarda-chuva tende magneticamente para o céu. Que objecto é este – o guarda-chuva?

A realidade guarda-chuva transporta uma ligação invisível com os espaços celestes, nos seus volúveis humores. O seu tecto de pano – opondo-se à solidez de um telhado, etapa em que a casa coroa a sua ligação terrena em enchapelada importância – liga-se por um fio invisível de chuva às líquidas comportas do céu. E é aqui, nesta sua ligação etérea, que o guarda-chuva revela a sua natureza circunstancial e fugidia, em que os comportamentos se determinam no horizonte das suas ligações. Sigamos umas linhas mais no esclarecimento da natureza do acessório…

Imitar, já dizia o velho Aristóteles, é acto consubstancial ao homem que, esteta por natureza, inventa jardins inodoros nos canteiros guarda-chuvais que são as cidades pluviosas. Vistas de cima, as ruas são campos de malmequeres de lona e de lírios com abertura automática - e verdadeiras flores andantes são os mortais à chuva! Vista de baixo, a panorâmica é pobre e entristecida, não sendo senão um feixe mecânico comandado por uma espécie de pau com um pano por corola. Por isto mesmo, dada a sua natureza volúvel e ligada ao céu, estou em crer que um guarda-chuva deve ser perdido mais vezes do que o Funes perde a carteira, sendo esta convicção o motivo para que um guarda-chuva nunca durasse mais do que 2 horas em minha posse…

Pois bem, hábil em perder guarda-chuvas, sou uma vítima da meteorologia. E como vítima que sou, as pessoas, condoídas, vão interrogando as causas do meu ser encharcado e, alheias às verdades de Tales de Mileto, privilegiam a secura nos caminhos do meu dever-ser: vão-me emprestando guarda-chuvas que nunca terão regresso, feliz acessório de raiz em nuvem que os mortais, transgressores, teimam em ligar ao chão.

Muito tenho justificado a minha insistência em perder guarda-chuvas, sem que consequências de monta chovam na minha integridade física e mental. A excepção acontece agora, quando alguém, cuja identidade não revelo por temer represálias, me emprestou o seguinte guarda-chuva:

Este espécime, não sei por que cargas de água, teima afirmar a sua importância nodal para os caminhos do acontecer e do ser, de tal maneira que o mesmo alguém que mo emprestou chegou ao cúmulo de me ameaçar fisicamente caso o perdesse. Sob opressão, vou mantendo o guarda-chuva e perdendo tudo o resto (liberdade de expressão e pensamento), sabendo que o culpado vive abrigado da sua própria essência, pela via da hostilidade e violência. E ele lá vai subsistindo… vejam o seu ar impune e ajanotado:



O farsante; o drogadito; o pequeno-burguês!...

7 Comments:

Blogger filipelamas said...

Nunca me havia ocorrido adjectivar assim um instrumento que apenas associo a uma utilidade sazonal como é o guarda-chuva ou chapéu-de-chuva, consoante as terras. Escrever é mesmo mostrar o mundo de forma diferente. Parabéns!

3:56 da tarde  
Blogger rps said...

Por os perder, não uso. Há muitos, muitos anos. Valem-me o pequeno chapéu impermeável e, claro, a viatura...

Em todo o caso, só andaria com esse guarda-chuva se me pagassem cachet - não faço publicidade de borla.

5:06 da tarde  
Blogger lp@wonderland said...

Comprar livros...desculpas...
Está explicado porque vais ás compras em dias de chuva...deixaste-o em casa não foi? :)

6:59 da tarde  
Blogger rtp said...

Muito interessante esta sua visão do guarda-chuva.
O meu tem uma designação mais moderna que revela outras utilidades. Foi-me vendido como "anti-vento"! E a verdade é que resiste às ventanias mais fortes. Dobra-se todo, ameaça partir-se, mas retoma sempre a forma inicial.
Depois deste belo post sobre o "guarda-chuva covencional" fico a imaginar o que criaria a propósito de um "anti-vento vanguardista"! :-)

11:32 da tarde  
Blogger Rosario Andrade said...

Bom dia!
Os seus textos sao absolutamente deslumbrantes! So aqui se pode navegar na linfa ontologica dos objectos comuns. Deliciosamente!
Também sou daquelas pessoas que perde o guarda-chuva de cada vez que o usa. Para evitar as molhas agora uso um truque portugues: estaciono num local tacitamente proibido, mesmo a porta do departamento... e vou fazendo uns olhinhos...
Bjicos

9:25 da manhã  
Blogger Elentári said...

O meu acabou de ser destruido pelo vento! Fui também uma vítima mas, vá lá, não sofrerei represálias... :)
Quanto a ti, cuida bem do teu farsante, drogadito e pequeno burguês! Não vás um passo além desses insultos, pois o castigo, pelo que descortinei, pode ser aterrador!!!!!!

1:31 da tarde  
Blogger António Conceição said...

Pois eu, caro Aristóteles, tive que me casar por causa de um guarda-chuva.

9:32 da tarde  

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