domingo, julho 15, 2007

A funerária Cebola

Subsistia para os lados da Alta, entre Repúblicas, sob a vigília da Cabra e muito próxima da inefável Rua da Matemática: era a Funerária Cebola. Sempre julguei – apoiado no dito de Eça, segundo o qual tudo em Coimbra é “asilo de sabedoria” – que este nome, aplicado a uma funerária, não era mais do que uma sinalização do homem enquanto ser-para-a-morte. É que a conhecida gíria para um relógio inconstante (Cebola) assenta que nem ginjas à sempre indefinida espada de Dâmocles que nos pende sobre as cabeças, dizendo que, mais tarde ou mais cedo, seremos clientes efectivos de análogo estabelecimento. Em sã convivência com o Relógio da Torre, a cebola fatal; Se um dá contagem crescente, a outra faz contagem decrescente - o relógio da vida; a cebola da morte.

Mas não era só o nome que dava particularidade e carisma à velha agência coimbrã. A Funerária Cebola, de relógio em riste para a contagem decrescente sabia, como Malraux (o Manuel Maria Carrilho francês) que só a morte transforma a vida em destino. Por isso, adequaram os seus serviços a uma cidade secularmente devotada aos estudantes, legitimando post-mortem a sua vocação estudantil. Empenhada em oferecer uma maior gama de serviços aos seus normalmente pouco combativos clientes, a Funerária Cebola, ostentava na porta o seguinte aviso:

- Funerária Cebola. Tiramos fotocópias.

Foram incontáveis as vezes que a funerária cebola me salvou a vida. Quando o engarrafamento nas fotocopiadoras oficiais era imenso, aquela calma de morte, discreta e bolorenta, deu guarida a muitas das minhas urgências de estudo. Copiou Hegel, Marx, Kant; copiou Heidegger. Plural era o expediente da Funerária Cebola. E interdisciplinar.

Cópias A4 de cristalinos versos, elevados ensaios, inteligentes tratados – de obstetrícia; de estudos literários; de Análise Matemática… - de paixões da Alma. Algum toner para melhor se compreender gráficos comparativos, análises empíricas e estudos comparados. Depois de fazer cópias destes lavores da alma – copiando a alma em si mesma, ao arrepio de Platão – a funerária cebola encaderna os corpos pálidos em lombadas de pinho. Para que não se diga, como o antigo estudante José Régio, que, ao poeta, “as asas não lhe cabem no caixão”.

Aqui fica o post, grato à vocação total deste digno exemplo de uma loja, de um conceito, de uma imagem de marca na arte de bem servir: Funerária Cebola – contra um saber putrefacto.

4 Comments:

Blogger Elentári said...

A funerária cebola é sem dúvida um exemplo de flexibilidade e polivalência!
O nome terá sido inspirado nos decerto imensos estudantes que ao desfolhar os apontamentos (lá fotocopiados!) choravam devido à tarefa de encaixar matérias à última da hora?
O certo é que o nome é bem conseguido: "choramos" na aflição do estudo, e choramos na morte...

1:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

essa funerária ressuscita mortos (Hegel, Marx, José Régio...).

1:45 da tarde  
Blogger feniana said...

gostei.
gostei bastante deste teu post sobre a funerária com nome tão...
como direi?
risível.
talvez.

7:53 da tarde  
Blogger rps said...

Oh Aristóteles! Posta mais vezes, foda-se!

3:11 da tarde  

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