terça-feira, outubro 30, 2007

A rotunda...

...da Boavista era duplamente um círculo vicioso. Ameaçadora. Repetitiva. A rotunda era uma espécie de maldição, disfarçada em belos drapeados. Decorria uma sessão fotográfica, em que modelos se passeavam em vestidos de noiva. O trânsito parado; os automobilistas, em marcha lenta, babavam, com maior ou menor indiferença às vozes irritadas de algumas automobilistas. No meio do jardim encenava-se a festa, enquanto o restante circo pegava fogo: o glamour ao centro, o frenético caos em torno.Facilmente se imaginaria uma espécie de sucessão cronológica, com o jardim a representar o "antes" e a caótica rotunda a imitar o "depois"... Sem querer, uma qualquer revista de moda ou um qualquer estilista encenou, no corpo da própria cidade, o paradigma dominante dessa instituição antiga: o casamento.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Reflexão de tasco: o empadão

Debatem-se os fregueses com pratos de peixe. Estranha-se. ..
A clientela, maioritariamente estudantil, padece, como eu, de preferências carnívoras, pelo que se pressente mistério por entre o burburinho do almoço. Sento-me. Pergunto pelo prato do dia.

- O de carne é empadão – anuncia a empregada num virote. Empadão. Eis o mistério. A palavra contorce-se na sua expressividade, tendo o “ão” final uma clara tonalidade celulítica, aumentando a já muito anafada “empada” inicial. Além do mais, convenhamos, o empadão é produto de uma gastronomia de subsistência e de reciclagem. Espelha a necessidade, as dificuldades, o necessário aproveitamento – e empadão é, por isso, uma oferta anacrónica face aos tempos de sofisticação consumista em que convivemos. Mas resisto:
- Venha de lá esse empadão!

Olho em volta. Sou o primeiro arrojado a pedir o manjar. Que demora. Até que, ao aviso do balcão, lá me aparece o prato fumegante. Servem-me então uma travessa de... lasanha.

Entre um empadão e uma lasanha nota-se diferenças: proveniência, etimologia, conotação... Porém, substitua-se a batata por massa, o ovo por queijo parmesão, e logo de empadão se faz lasanha. O empadão é uma espécie de low cost da lasanha, que é por sua vez uma forma mais harmoniosa de empadão. Aceito então o teimoso engano da empregada. Encaro-o como uma crítica velada às buscas do pitoresco, do estrangeirismo; vejo este equívoco como uma picardia de portugalidade, anichada numa espécie de ironia da tradução. Consumo o manjar, pago e procuro a saída. Só então aprecio a esclarecedora inversão.

Entre os clientes, nenhum prato de peixe. Todos pediram, a partir da excepção que quase me orgulhei de representar, empadão, logo que se aperceberam que, afinal, era lasanha.

Males de tradução. Apaladadas oportunides de sociologia.

terça-feira, outubro 16, 2007

A letra “cê” é ilustre o suficiente para pertencer ao corpo designativo do abecedário: o abc, ou por extenso o a-bê-cê. Apesar de ser a última das letras matrizes, o curvilíneo cê é ainda parte de uma sequência fundadora ou de uma notação musical, que orquestra todas as restantes letras. Daí que “Cê” seja C de Caetano; seja “C” de um concerto com essa mesma designação… e logo no Coliseu: Cê.

Como se Caetano viesse depois de Bethânia (creio que, ainda por cima, é mais novo!), depois de António Carlos Jobim (o A fundador), e ainda depois de Chico (há que transgredir a sequencialidade do alfabeto) – não deixando de pertencer ao ABC da MPB e dos seus históricos. Um ABC em que Elis, de Elis Regina, ocupa uma posição de quase transcendência alfabética.
Cê, pois: de cínico… Cínico concerto, o de Caetano. Cínico é ter terminado, na apoteose do encore, fazendo o público cantar, em adoração, “odeio você”, como cínica é a sua entoação e a sua postura.

E “cê” ainda porque, caramba!, cantar assim, garridamente, tropicalmente, não pode sequenciar-se, nem ordenar-se, no rumo determinável de um monótono (etimologicamente, um único tom) A-B-Cê. Como o próprio canta:
"Alguma coisa está fora da ordem"...

quinta-feira, outubro 11, 2007

Nota sobre o brilhantismo da CMP



Era hoje impossível entrar no Metro, na Avenida dos Aliados. Ao que parece, vão instalar por lá uma árvore de Natal, vaidosamente tida como “a maior da Europa”... Trata-se de mais uma iniciativa, mais uma acção moralizadora sobre os destinos do erário público, mais um culturalmente informado número da CM Porto.

Se o Pai Natal estiver em dias arrojados e as renas devidamente afinadas, pode ser que lá faça meia dúzia de loopings sem colidir de genitália no anjinho do topo... Uma espécie de Pai Natal air race, com o povo embasbacado a ver!

Isto sim, é um “Porto feliz”!


PS: Imagem retirada da Auto Sport, em homenagem aos carros de corrida que, também eles, deram um impulso decisivo à cultura da cidade.

terça-feira, outubro 09, 2007

A importância de se chamar Ernesto

…soube ser qualquer coisa de que só a literatura sabe realmente falar. Talvez por isso, numa quase épica valentia, conseguiu escrever essa magnífica carta de despedida aos pais, essa espécie de testamento escrito em condições extremas e com a consciência de ser a última coisa que escrevia: “ainda sinto sob os calcanhares o dorso de Rocinante”… A dimensão maior desse guerrilheiro não esteve na doutrina, mas na literatura, a sua única pátria verdadeira.

Admiro a sua falibilidade, bem como o modo contrastivo como soube errar, em grande estilo; como nessa conferência de imprensa em que abre um sorriso largo, franco e generoso ao citar o excerto de um poema para, no instante seguinte, subitamente, assumir o rosto mais terrivelmente sombrio e austero, apelando ao trabalho nos limites, para lá do humanamente possível. Admire-se essa forma de egoísmo que é a de medir o mundo pelas forças próprias, quando achou que se ele mesmo conseguia vencer as graves maleitas de saúde de que sofria, também todos os outros, certamente o conseguiriam. Há aqui uma espécie de subestima de si mesmo, equilibrada por uma excessiva fé em todos os outros.

E ele sabe ser ainda hoje a negação do mundo, na elevação de um qualquer impossível urgente. Quando vemos, hoje, que a horda de assassinos contratada para o assassinar se trai entre si para crescer um pouco, quando os vemos a desmentirem-se e a intrujarem-se entre eles mesmos, tendo presente a dimensão do mito que, apesar de tudo, contribuíram para erguer – sabemos que essa corja de abutres está do lado do mundo, deste mesmo mundo, e que uma das escapatórias possíveis vem na directa inspiração desse rosto severo e sonhador. Sophia foi talvez quem bem o leu: “Porém/ Em frente do teu rosto/ Medita o adolescente à noite no seu quarto/ Quando procura emergir de um mundo que apodrece”.

Admiro-o por essa quase sobrenatural força de identificação. Sabemos que, para lá das ideologias ou dos motivos de uma razão messiânica, entre ele e os que se lhe opuseram, entre o que escolheu representar e as farsas impunes de um mundo em que tudo se trafica, apreciando os motivos de uns e o sonho do outro, o nosso lado surge de forma esclarecedoramente clara. No tempo dos assassinos, escolhemos não o ser, para estar antes do lado de Ernesto.

Ele é ainda o nome de uma forma clara de evasão que, por norma, só os heróis das narrativas proporcionam. Leia-se então em Ernesto uma personagem de romance… Apenas isso.

segunda-feira, outubro 08, 2007

O triste abandono dos clichés

Uma espécie de vertigem de desolação, um género de noite do mundo.

Regresso a casa. Livro-me de pastas e de pesos mal-vindos. Tento encontrar essa espécie de paz de espírito necessária à produção de qualquer coisa e, num cigarro regenerador, sinto-me no conforto classificatório de ser um conjunto imenso de clichés. É bom encontrar um ramo seguro na velha e veneranda árvore de Porfírio, e ser-se um cliché tem essa inegável vantagem: deixa-se a desarrumação de se ser seja o que for para se atingir a ordem de alguma ordem que nos precede. E assim se chega a um escritório. E assim se encontra uma pilha desordenada (cliché intemporal) de livros manuseados, lidos e treslidos. Recostamo-nos sobre a cadeira giratória (fase mais ergonómica do cliché) e testamos-lhe ousadamente a segurança – pode cair o prédio, podem chover picaretas ou podem baixar os impostos que esta cadeira se manterá sólida e segura. Só então, no início do trabalho, reparamos no desconforto de não haver trabalho nenhum...

E tombam os clichés, desordena-se o universo, que nos assalta de precariedade e contingência – Acabou! A tese acabou! Não há mais tese! Temos uma resma de folhas, de aspecto desoladamente definitivo, e entre elas está o nosso bulício vital ordenado em capítulos e em notas de roda-pé. Para lá há o nada, o caos, o não se chegar a saber o que se é, o não haver mais desculpas para o desmazelo, a desarrumação ou essa espécie de destrambelhamento prático que é o charme natural do filósofo.

Contava (ou poetava, não sei bem!) Manuel da Fonseca, que certo homem passava o dia inteirinho de Domingo à beira-rio “segurando uma cana donde caía um fio para a água…” Ora esse homem, prosseguia o poeta, “um dia pescou um peixe,/e nunca mais lá voltou…”

Não há melhor formulação para a tristeza volumétrica de uma tese já feita, oportunidade para a dissolução de clichés, de seguranças classificatórias – como se tivéssemos iniciado um trabalho sob a condição de o não acabar mais.

Se a estratégia não fosse um cliché, juro que à noitinha, sem que ninguém se apercebesse, desmanchava a tese para a refazer de dia, num cliché de desespero e académica angústia... Adeus cliché!

sexta-feira, outubro 05, 2007

Fantasmas...

Na tela de cinema, nota bem Derrida, vive sempre uma experiência fantasmática. E não apenas na episódica experiência do filme, mas em todo o ritual do cinema, quando entrávamos em cerimoniais silenciosos, recostávamo-nos no aveludado das cadeiras e preparávamos um método catártico muito próximo da psicanálise. Preparava-se então a vinda do que não chega a vir ou a aparecer – o fantasma ou o filme – e, desde o início, tratávamos a sala de cinema mimando o espaço vazio, acompanhando com os olhos o horizonte da tela que, como a folha de Mallarmé, era a pele de um “jogo insensato” prestes a ter lugar.

E não, não falo apenas no “bom” cinema ou nos filmes do culto – falo no rito que, de vez em vez, se repetia, desde as mais juvenis, precoces e por vezes clandestinas incursões naquele território mítico que era a sala de cinema. Talvez se lembrem de, na cortina descida do Batalha, jogar com os restantes convivas ao “onde está o anúncio?”, que consistia em passar os olhos a grande velocidade todo o espaço da tela para descobrir, o mais rápido possível, o lugar exacto em que estava a publicidade ao Brandy Messias, à Porto Calem (porque será que só me ocorrem nomes de bebidas?), consoante o desafio lançado pelo colega do lado. E o fascínio está justamente no facto de todos reclamarem a autoria do passatempo, apesar de ter sido um jogo repetido de geração em geração; como se tudo o que envolvesse o cinema se reinventasse ex nihilo, quando cada repetição é na verdade uma reinvenção sem coincidência, num jogo poiético.

Escusado será dizer que tudo isto morreu ou está moribundo. Porém, honrando a experiência fantasmática do cinema, pediríamos apenas, cá no Porto, cidade que inventou a cinefilia em Portugal, que trouxessem os mesmos filmes que o restante País (Lisboa) tem direito a ver. Oferecem-nos realmente três ou quatro Ratatuis, quatro ou cinco Estás cada vez mais frito, meu... (título que transporta uma espécie de diagnóstico desesperado), mas de Gus Van Sant, de Tsai Ming-Liang – para apenas mencionar os exemplos que me afectam mais pessoalmente – vemos apenas a crítica e, numa herança ainda cinéfila, o fantasma.

Claro que há sempre o La Féria para nos entreter, mas...

quinta-feira, outubro 04, 2007

Como se tem visto e pressentido, este espaço não tem tido muito movimento. É uma espécie de elefante branco no zoo da blogosfera, um ornitorrinco, senão mesmo um unicórnio, que, como Deus na sua transcendência fundadora, se tem dedicado à lânguida arte de não fazer nenhum.

Porém, mau grado as evasivas das férias, feriados, dias santos e afins, estou finalmente carregado de trabalho. O que significa que deixei de ter a desculpa de não postar por não ter nada que fazer...

De regresso, pois... Aqui vai disto!

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