Atirar a primeira pedra?
Chama-se Sarah Maple. É muçulmana e inglesa, dupla pertença, de culto e de nacionalidade, que assume totalmente. Vive como que atravessada por um preceito plural, a que dá uma resposta artística evidente: tem uma educação ocidental e é “espiritualmente muçulmana”, pelo que se lê como que atravessada por imperativos aparentemente contraditórios. Reclama corpo e sensualidade no limite do seu véu, sem abdicar de uma e sem renunciar ao outro. Nessa contradição vive o âmago da sua provocação, e quando recebe ameaças e manifestações de ódio, quando a galeria londrina onde expõe é apedrejada, reage apenas perguntando se será pior muçulmana por viver “como uma pessoa normal”.
As organizações muçulmanas reagem de modo mais brando do que os particulares. Dizem apenas que Sarah é ofensiva, que explora o escândalo como estratégia comercial – e lamentam as manifestações de ódio, defendendo a liberdade de expressão.
Entretanto, apressam-se jornais e jornalistas nas vagas ou declaradas acusações de “fanatismo”, “intolerância” e “intransigência”, despertando o fantasma do “inimigo muçulmano”. Lembram implosões de budas milenares e explosões de torres gémeas – não sem razões de lamento, mas não tantas nem tão absolvidas quanto consideram as suas condescendentes almas.
Talvez não soubéssemos o que pensar quando, não há muitos anos, um filme de Oshima despertou a ira persecutória do Bispo de Braga e de uma horda de fiéis, como não sabemos hoje como responder ao escândalo vigilante dos seguidores de Maomé. Sabemos, porém, que a necessidade de leitura e interpretação impede –essa sim, com fúria censória– de definir os papéis de “bom cristão” de “bom muçulmano” ou de “bom taoista”; e que essa mesma necessidade gera nomadismos, recusas, posicionamentos que não deixam de reescrever o significado da espiritualidade no hoje dos dias de hoje.
E sabemos que a ultrapassagem das identidades monolíticas, reafirmada no sempre provocador acontecer artístico, vai impedir igualmente a ilusão de regenerada superioridade, de quem, na proximidade do argumento evangélico, mais facilmente vê o argueiro nos olhos dos outros do que uma trave na sua própria vista; e por isso declara, em inocente singeleza mental, que há apenas dois lados, em que o correcto invariavelmente se posiciona na perigosa e lúbrica zona do seu próprio umbigo.
Perguntem às seguidoras de Fátima, principalmente se deslocalizadas, num chão cultural que nunca lhes pertenceu.
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