terça-feira, novembro 11, 2008

Land ho!

A vida imita a arte, que imita coisa nenhuma. E essa coisa nenhuma que, em rigor, todos ambicionamos ser, materializa-se por vezes numa figura narrativa, como se personagens de romance viessem vingar rotinas poeirentas, na magia musical de recantos de nós. É por isso que, nos locais que são nossos, descobrimos no imaginário um “quê” de concreto, que lhe permite soltar âncora e vaguear na imensa possibilidade de mundos impossíveis.

Imagine-se então um local que, em plena zona ribeirinha, indicie desde logo uma experiência de indefinição no nome por que se apresenta: Porto Feio. Na escrita caligráfica, ou numa certa correcção bairrista, há quem leia Porto Frio. Às primeiras terças-feiras de cada mês, o Porto Feio é palco de uma reunião de músicos, amantes da guitarra portuguesa. Assim mesmo, sem letra de fado e sem cantores ao desafio – apenas música, arte cuja propriedade viajante se confirma na postura do dono do estabelecimento, no seu ar de vetusto eremita do mar.

E eis que subitamente, em escalas de guitarra, tomamos o Porto por Nantucket e trocamos Garrett por Melville – e em plena Ribeira desvenda-se um navio baleeiro com baladas de Coimbra. No seu anfitrião, sugere-se a figura ora apagada ora impositiva do capitão Ahab em pessoa. É ele quem, logo à entrada, pergunta quase rispidamente: - “Não são da ASAE, pois não?” – E logo num esgar, parecido com um sorriso: - “…então podem entrar!”

As cadeiras dispõem-se circularmente, numa espécie de oval que possa permitir circulação. Bebe-se sangria ou cerveja. Ao centro, guitarras que se dedilham sem disciplina, sem espectáculo que não seja aquele que cada uma retire de si mesma. Não sabemos se num gole de guitarra ou numa nota de sangria, o cenário transporta-nos para uma espécie de mesa de convívio com uma profusão de fantasmas de muitos tempos, reunidos no local certo para expiar o vento frio (ou feio) da dura realidade. E por isso o capitão Ahab abre-nos a porta para o percurso de Orfeu, com recursos de Dionísio, dizendo-nos que se há cidades que se dizem em guitarra, há sempre possibilidade de viver uma cidade como se trouxesse uma guitarra dentro – ou uma personagem de romance: o capitão Ahab.

E descobrimos então que este dedilhar quase secreto, quase clandestino para o bom-senso da urbe, é afinal parte da sua respiração húmida – e vive-se como um segredo a mais, guardado pela figura extrema do capitão Ahab.

É o próprio comandante do baleeiro que me abre a porta, num boa-noite dito entre dentes, quando o relógio me diz que são horas de ir embora. Parto de Nantucket e reclamo, na recordação imaterial da guitarra, um regresso ao Porto de origem.

Enquanto me retiro, o grupo disposto em oval continua a dedilhar. Tenho a sensação de que se o desenho cartográfico fosse visível desde o Google Earth, veríamos a silhueta de uma guitarra portuguesa, misteriosamente repousante na margem do Douro. Uma guitarra à vela, plácida e serena, como um barco rabelo nas linhas imaginárias que desenham a zona histórica do Porto. Uma geografia que se abandona assim que a manhã renasce, como se a cidade se reapropriasse do fundo musical que a desmaterializou.

5 Comments:

Blogger Taxi Driver said...

Dá vontade de partilhar esta identidade, este espírito com quem não é português.
O máximo que cheguei a fazer foi beber sangria no Púcaros. Lembraste? Da próxima vamos ao Porto Feio! ;)

2:55 da tarde  
Blogger DomingonoMundo said...

Justamente! E desta vez tivemos a companhia de uma professora turca, pelo que essa inspiração identitária esteve bem presente. Combinamos uma ida lá, na primeira terça do próximo mês, vale? É que além das guitarradas serem sempre nesse dia, o "velho marinheiro" só abre quando bem lhe apetece...

9:54 da tarde  
Blogger Verdesanos said...

Pois é. Um tesouro (quase) escondido nas ruelas do Porto.

Na porta do Feio lê-se o seguinte aviso: "Se está fechado é porque não abri, se não está aberto é porque já o fechei".

E acreditem que é mesmo verdade!

11:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Usted no deveria estar haciendo la tese de doutoriamiento?!

11:28 da tarde  
Blogger DomingonoMundo said...

Já a fiz, Salamanca. E vou defendê-la na próxima terça, Madre de Dios?!

10:08 da manhã  

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